07/02/2022

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O impacto das cotas nas universidades públicas

 

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Há 25 anos apenas 4% dos jovens negros (1,8% pretos e 2,2% pardos) frequentavam ou haviam concluído o ensino superior no Brasil, segundo o Ministério da Educação. As chamadas ações afirmativas, políticas públicas para reverter esse quadro deplorável, entraram na pauta da política institucional nacional em 1999, com o projeto de lei 73, que só assumiu redação definitiva em 2008 e só virou lei federal em agosto de 2012, quando mais de 160 instituições públicas de ensino superior já haviam implantado – por conta própria ou por determinação de legislações locais – variados programas dessa natureza em todo o país. Quatro meses antes, o Supremo Tribunal Federal (STF) havia indeferido a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186, de 2009) do partido Democratas (DEM) contra o sistema de cotas da Universidade de Brasília (UnB). A agremiação, herdeira da velha Arena, base parlamentar do regime militar, afirmava que haveria “danos irreparáveis” se a matrícula na universidade fosse realizada pelos candidatos aprovados com base nas cotas raciais,  que “a ofensa aos estudantes preteridos porque não pertencem à raça ‘certa’ é manifesta e demanda resposta urgente do Judiciário” e que era preciso impedir “qualquer nova decisão que, a qualquer título, garanta o acesso privilegiado de candidato negro em universidade em decorrência da raça”. O STF decidiu por unanimidade que as ações afirmativas propiciavam um ambiente acadêmico plural e diversificado e tinham o objetivo de superar distorções sociais historicamente consolidadas.

 

Portanto muita água rolou antes da lei de cotas (12.711), que deve ser avaliada em 2022, como prevê seu artigo 7º. Luta de décadas, a reparação histórica de 388 anos de escravidão por meio de uma política efetiva de inclusão racial não foi resultado das luzes serenamente lançadas pelo saber científico sobre uma aberrante situação de injustiça social, mas conquistada – em avanços paulatinos e irregulares – pela pressão organizada e crucial de associações, ONGs e núcleos do movimento negro atuantes em todo o país, sem os quais o assunto continuaria dormitando nos parlamentos, tribunais, governos e conselhos universitários. Só depois disso, uma série cada vez mais volumosa, embora fragmentada, de pesquisas vem demonstrando o quão bem-sucedido tem sido esse processo de abertura das universidades àqueles que sempre foram deixados para trás. Uma das pautas mais importantes desde o início da redemocratização brasileira, a democratização do acesso ao ensino superior é apenas o início de uma história que já transformou as graduações, está alterando o perfil dos cursos de pós-graduação e começa a apontar para uma renovada representação racial (e de gênero) na docência e na própria composição – e produção intelectual –  da comunidade científica.

 

“Não tenho dúvida nenhuma de que a implantação das cotas, dado algum tempo, e não é aquele tempo geológico, de ficarmos esperando um século, terá reflexo muito grande em todas as posições que são dependentes da qualificação técnica e científica”, diz Marco Antonio Zago, presidente do Conselho Superior da FAPESP e reitor da Universidade de São Paulo (USP) entre 2014 e 2018, quando a reserva de vagas por critérios sociais e raciais foi implantada na maior instituição de ensino superior público do país. Segundo Zago, a agência de fomento paulista está atenta aos processos em curso nas instituições que são suas stakeholders – as universidades e os institutos de pesquisa paulistas. “A USP, por exemplo, mudou muito de posição. Quando eu assumi a reitoria, havia uma clara resistência à mudança. Todos diziam que era muito importante fazer inclusão social e racial, ninguém discutia o princípio, o problema era a execução, e o argumento que se apresentava como o mais racional era ‘isso não deve ser feito assim de uma maneira forçada, o que nós precisamos fazer é incluir muito e melhorar muito a qualidade do ensino básico, de tal maneira que todos competirão de maneira igual e finalmente a sociedade estará representada na universidade’. Ora, pode até parecer que faz sentido, desde que você tenha mais cem anos para realizar”, pondera Zago, que também presidiu o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) entre 2007 e 2010. “Se você intervier no topo, naquele segmento do ensino que é o mais diferenciado, onde as pessoas serão lideranças que vão conduzir o processo, você potencializa a intervenção mais ampla.”

 

No início dos anos 2000 as três primeiras instituições de ensino superior que adotaram cotas étnico-raciais foram a Universidade do Estado da Bahia (Uneb), a do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a UnB. A Uneb aprovou o sistema de cotas para graduação e pós-graduação em 18 de julho de 2002. O primeiro vestibular com ações afirmativas da UERJ ocorreu em 2003. Em 6 de junho do mesmo ano foi aprovado o Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial da UnB: 20% do total das vagas do vestibular seriam destinadas a candidatos negros, separadas e independentes de cotas sociais. A Federal da Bahia (UFBA) implementou reserva de vagas por critério sócio-racial no final de 2004.

 

Nas estaduais de São Paulo as coisas demorariam mais uma década para começar a acontecer, em uma transição conflituosa das fórmulas de bonificação (pontos adicionais no vestibular) para a de reserva de vagas (cotas). O conselho universitário da Universidade Estadual Paulista (Unesp) aprovou sua política em agosto de 2013. Quase quatro anos depois, em julho de 2017, 75 membros do conselho universitário da USP disseram sim ao sistema de cotas a partir do vestibular 2018; 8 disseram não e 9 se abstiveram. Segundo Zago, existia na USP uma clara divisão daqueles que argumentavam que em se tratando da universidade era sempre necessário garantir o acesso àqueles que estavam mais preparados e que tinham portanto mais méritos. “Ninguém falava de segregação racial, de negar direito às pessoas. Eram argumentos mais sutis, que se escondiam sob a denominação genérica de meritocracia. O outro grupo, em que eu me incluía, entendia que se nós não fizéssemos intervenções concomitantemente em todos os níveis, inclusive na universidade, nós não teríamos resultados mais rápidos, como eram necessários. E o único local em que nos restava capacidade decisória para intervir era na universidade, era privilégio nosso decidir o que fazer.”

 

Na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) as cotas substituíram as bonificações após uma greve, em 2016, com direito a ocupação da reitoria por estudantes durante quase dois meses. Aprovada em 21 de novembro de 2017, começaram a vigorar em 2019, ano em que também foi realizado o primeiro vestibular indígena. Desde 2004 a universidade oferecia pontuação extra no exame de entrada a estudantes oriundos de escolas públicas, e pouco depois a pretos e pardos, por meio do Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social (PAAIS). Mas a representatividade da população negra avançou poucos pontos percentuais com esse mecanismo. No primeiro ano dos sistemas de ingresso com cotas étnico-raciais, 37,2% de pretos e pardos entraram na universidade [minha sugestão é transformar a tabela abaixo em gráfico]. Além disso, a experiência demonstrou a insuficiência das cotas sociais para o enfrentamento da questão racial, como os movimentos negros sempre apontaram. “Embora tenhamos uma correlação de aproximadamente 85%, de estudantes pretos e pardos da Unicamp serem também de baixa renda, nós sabemos que o racismo é um fenômeno estrutural que perpassa todos os grupos de renda”, diz o historiador José Alves de Freitas Neto, coordenador da Comissão Permanente para os Vestibulares da Unicamp (Comvest). “Ele é mais visível e tem uma conotação mais perversa nas periferias, nos grupos mais pobres, mas também atravessa as classes médias, que, por exemplo, com muito esforço, pagam uma escola particular para seus filhos.”

 

 

ingressantes pretos, pardos e indígenas

 

USP

Unicamp

Unesp

2018

16,8%

23,9%

17,6%

2019

19,2%

37,2%

17,7%

2020

21,1%

33,5%

18,5%

2021

22,8%

31,5%

17,7%

 

fontes: Jornal da USP (28/5/21, por Adriana Cruz); Comvest (acessado em 7/2/22); Eduardo Galhardo, Prograd/Vunesp/Cope-Unesp

OBS: No caso da USP, esta tabela contabiliza PPIs a partir da porcentagem informada da cota EP

 

Qualitativas

Uma pesquisa apoiada pela FAPESP realizada em 2017 pelo engenheiro eletrônico Jacques Wainer, da Unicamp, e pela economista Tatiana Melguizo, da Universidade do Sul da Califórnia (EUA) comparou a performance de cerca de 1 milhão de alunos no Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) entre 2012 e 2014 e revelou que o desempenho de formandos que ingressaram no ensino superior por meio de ações afirmativas equivale ou supera o de jovens que entraram em instituições de ensino superior pela chamada ampla concorrência.

 

Mário Sérgio Vasconcelos, que dirige a Coordenadoria de Permanência Estudantil da Unesp, Eduardo Galhardo, Fernando Frei e Edgar Bendahan Rodrigues, da Faculdade de Ciências e Letras (Assis) da universidade, publicaram em novembro de 2020 o estudo “Desempenho acadêmico e frequência dos estudantes ingressantes pelo Programa de Inclusão da Unesp”. Foram vasculhados e sistematizados os dados referentes à população total de estudantes ingressantes na Unesp em cada um dos anos entre 2014 e 2017. As informações foram extraídas de um banco de dados oficial com 35.294 estudantes e 52 variáveis. A conclusão do quarteto – empenhados a seguir a análise nos próximos anos – é clara: “Os dados coletados indicaram que não há diferenças relevantes de rendimento acadêmico entre os estudantes que ingressaram na Unesp pelo sistema universal e aqueles que ingressaram pelo sistema de reserva de vagas [veja tabela com alguns resultados da pesquisa].”

 

Unesp – Desempenho acadêmico de cotistas e não cotistas – 2017

       
 

índice de desempenho

frequência média

 

SU

88,8

89,2

 

EP

84,6

88,6

 

PPI

80,7

87,5

 

           

 

índice de desempenho: % de disciplinas em que foi aprovado(a)

frequência média: % de comparecimento

SU: sistema universal (não cotistas)

EP: egressos de escola pública

PPI: autodeclarados pretos, pardos e indígenas

 

fonte: Eduardo Galhardo, Mário Sérgio Vasconcelos, Fernando Frei e Edgar Bendahan Rodrigues – Faculdade de Ciências e Letras de Assis (Unesp) – “Desempenho acadêmico e frequência dos estudantes ingressantes pelo Programa de Inclusão da Unesp” in revista Avaliação – publicação da Rede de Avaliação Institucional da Educação Superior (RAIES), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade de Sorocaba (Uniso), volume 25, nº 3, p. 701-723, novembro 2020

 

Um relatório técnico divulgado em 2 de dezembro de 2021 pelo Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (SoU_Ciência, vinculado à Unifesp), analisou a mudança de perfil de estudantes do ensino superior da área da saúde que participaram das provas do Enade em 2013 e em 2019 (o mais recente). Dentre as instituições públicas federais, foram selecionadas 15. As análises, realizadas por Maria Angélica Pedra Minhoto, Cláudia Guedes Araújo Silva, André Luiz Dias Vieira, Rafael Andrade e Victória Lopes demonstraram que com ações afirmativas a maior parte das instituições “teve um ganho na nota média da prova de conhecimentos específicos”. Na própria Unifesp, por exemplo, o incremento foi de 35,56 para 54,16.

 

“Todas aquelas previsões muito negativas de queda de qualidade não levavam em conta o quanto a existência da política muda a dinâmica de quem se candidata”, diz Márcia Lima, professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e coordenadora do Cebrap AFRO, núcleo do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento criado em novembro de 2019. “Você mudou o perfil de quem demanda a universidade. Hoje um aluno que é apto a se candidatar a uma vaga pelas ações afirmativas, já sabendo disso, muda a relação dele com o estudo, investe e se prepara. Ter uma chance já transforma muito todo o processo.”

 

Uma das iniciativas do Cebrao AFRO tem sido um levantamento da literatura dos últimos 20 anos sobre inclusão racial, que já identificou mais de 900 referências e está classificando o que é ensaio, o que é teórico e o que é resultado de estudo empírico. “Há muita coisa ensaísta, opinativa, na linha ‘ah, eu acho que cota é ruim porque racializa o Brasil’. Por outro lado estamos passando um pente fino nas empíricas, e a tendência desses resultados é apontar para mudanças muito positivas no sistema de ensino superior brasileiro”, diz Lima.

 

“Muitos trabalhos acadêmicos esperavam que o cotista desempenhasse pior, e muitas vezes seus autores escrevem, contra os dados, como se o desempenho fosse pior, seguindo um dogma de que necessariamente o cotista vai contaminar a universidade excelente”, diz Cláudia Silva, mestre em psicologia escolar pela USP e doutoranda em educação pela Unifesp, em reportagem recente publicada pelo Jornal da Unesp. “Os reflexos estão aí, e a qualidade do nosso alunado não sofreu aquele desastre que muitos diziam que iria acontecer”, afirma Zago.

 

Transbordamentos

Embora as cotas tenham hoje alcance e abrangência significativa entre discentes de graduação, ainda há muitos desafios quando se trata da pós-graduação e da docência. Segundo o Censo da Educação Superior de 2016, por exemplo, as mulheres pretas e pardas com doutorado não chegavam a 3% do total de docentes da pós graduação no país. Segundo Lima, que acumula quase 30 anos de pesquisas na área de desigualdade e discriminação racial e memória da intelectualidade negra, há muitas pós-graduações que já adotam algum tipo de ação afirmativa. Uma das iniciativas do Cebrap AFRO tem sido justamente fazer esse mapeamento. Em seu trabalho de pós doutorado, a pesquisadora Anna Venturini tem analisado cerca de 3 mil editais de pós em todo o país e seus formatos de inclusão. “Já a docência ainda é um enorme gargalo porque há pouquíssimos docentes negros nas universidades brasileiras. Desde as primeiras políticas implantadas até hoje são apenas 20 anos, e formar uma geração de pesquisadores é algo que leva tempo”, complementa a socióloga. Segundo Debora Jeffrey, professora livre docente da Faculdade de Educação e primeira presidente da Comissão Assessora de Diversidade Étnico-Racial da Diretoria Executiva de Direitos Humanos da Unicamp, com base em dados de 2021, de 1.800 docentes da universidade, 121 são negros (6,7%). “O último movimento é esse, e não sei quando isso vai acontecer nem qual das estaduais paulistas vai começar a ter cotas para ingresso de docentes, o que ainda é um grande vespeiro.”

 

Para Lima, do Cebrap, há um outro movimento, igualmente importante, que é a maior visibilidade da produção intelectual de negros e negras no Brasil. “Não me refiro apenas a esses jovens docentes, mas a uma produção de uma geração muito mais antiga, como por exemplo a Lélia Gonzalez, que foi uma intelectual muito reconhecida no movimento negro cuja obra não circulava como circula agora. Esse movimento tem muito a ver com a mudança de perfil dos estudantes da universidade, que passam a demandar ler autores negros, conhecer o pensamento negro, é uma consequência, não é um resultado de uma política direta para isso.”

 

O epidemiologista baiano Naomar de Almeida Filho, reitor da UFBA de 2002 a 2010 e responsável pela implantação, entre 2013 e 2017, da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), chama atenção para outro transbordamento da política de inclusão de negros e negras na graduação, além de indígenas e quilombolas, que é a demanda por reestruturação radical de currículos e arquiteturas curriculares. Em sua avaliação, é urgente que as instituições avancem para que as mudanças não sejam tópicas, apenas relacionadas ao acesso. “As universidades continuam com modelos curriculares muito atrasados e não se prepararam para receber esse contingente que vem de histórias familiares e sociais distantes da cultura universitária.”

 

Almeida Filho, que em 2019 tornou-se professor visitante no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, implantou nas duas instituições que dirigiu experiências que inspiraram iniciativas no estado de São Paulo. Uma delas foram os bacharelados interdisciplinares (BIs). “O projeto dos BIs não foi criar uma espécie de reciclagem ou recuperação de estudos, não foi um pedágio para cotistas, e sim um primeiro ciclo para todos. As pessoas não passam por essa formação para repor dificuldades ou lacunas na formação, não é essa a função. Algumas instituições até interpretaram equivocadamente que os cursos do primeiro ciclo seriam de reforço. O conceito da interdisciplinaridade é que os saberes contemporâneos devem ser saberes atravessados por outros. É por ser interdisciplinar que tem valor, não por ser um bacharelado prévio.” Segundo Almeida Filho, esse desenho adotado na instituição baiana está estreitamente conectado à questão das ações afirmativas. “O que provocou e propiciou o experimento que tivemos na UFBA dos BIs foi justamente um efeito já rápido das ações afirmativas. Em 2006 a gente já tinha dentro da universidade um contingente imenso, quase um terço da universidade formado por alunos que vieram de famílias que não teriam nenhuma chance de estar na universidade pública, apesar de virem do povo. Isso já atencipou para nós essa problemática da incorporação não só de sujeitos, mas sim de matrizes culturais e origens sociais. Então foram as ações afirmativas na Federal da Bahia que provocaram a demanda por bacharelados interdisciplinares, não o contrário.”

 

Com início em 2011, o programa de Formação Interdisciplinar Superior (ProFIS) da Unicamp oferece um curso de dois anos de duração, com um forte caráter de formação geral, que seleciona os melhores alunos das escolas públicas de Campinas a partir da nota no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Após a conclusão dessa etapa, os alunos escolhem entre os cursos de graduação de acordo com seu desempenho e o número de vagas oferecido em cada curso. “O ProFIS eu gosto até de falar que são cotas geográficas, porque a ideia é ter pelo menos um estudante de cada escola pública de Campinas”, diz o físico Marcelo Knobel, reitor da Unicamp entre 2017 e 2021. “A exclusão territorial é a exclusão invisível. Um território não se torna um atributo de uma pessoa. É parte de uma referência que é englobadora, pega coisas muito diferentes. Às vezes a exclusão territorial é mais decisiva do que a étnica ou social. Por exemplo, a Unicamp é uma universidade que é atrativa para todo o Brasil, e aí pode excluir exatamente o território ao qual pelo menos geopoliticamente está vinculada, o que é um paradoxo”, diz Almeida Filho.

 

Dados fragmentados

No estado de São Paulo as políticas de inclusão têm timings e modelos diferentes. Cada instituição seguiu o seu caminho. Basta mencionar que as cotas raciais na Unicamp não estão “debaixo” da cota para oriundos do ensino médio público (ela reserva no mínimo 25% da totalidade de suas vagas para estudantes autodeclarados pretos e pardos, podendo chegar a um número maior dependendo do desempenho dos candidatos nas provas); e que na USP não há cotas pelo critério de renda, um sub critério fixado na legislação federal, por exemplo.

 

Houve uma tentativa de ação coordenada, que foi o Pimesp (programa de “inclusão com mérito” no ensino superior público paulista), lançado pelo governo do estado em 2012, no Dia da Consciência Negra, com previsão de início de implantação em 2014, desde que fosse aprovado pelos conselhos universitários durante 2013. Elaborado no âmbito do Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp) em parceria com a superintendência do Centro Paula Souza e a presidência da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp), tinha o aval do governador à época, Geraldo Alckmin. O projeto não falava em cotas, mas em metas, previa a criação de um fundo especial para apoio à inclusão e, à semelhança dos IBs criados por Almeida Filho e do ProFIS, de um Instituto Comunitário de Ensino Superior (ICES) envolvendo todas as instituições envolvidas. O ICES seria um curso de tipo sequencial de dois anos voltado para o desenvolvimento de estudos gerais de nível superior com uma distribuição das atividades didáticas 50% presencial e 50% a distância. A seleção seria pelas notas no Enem. Com aproveitamento superior a 70%, os concluintes do 1º ano do ICES teriam ingresso garantido em cursos das Fatecs; os do 2º, também a cursos das universidades estaduais.

 

Mas, abandonado o que poderia ser o germe de um verdadeiro sistema de ensino superior paulista, à semelhança do consagrado no estado norte-americano da Califórnia, um dos desafios hoje é simplesmente ter dados centralizados sobre inclusão. “Infelizmente não temos por exemplo um portal estadual com informações consolidadas”, diz José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, instituição sem fins lucrativos de caráter comunitário que começou a operar em 2004 e hoje conta com 1.600 estudantes. “Seria muito fácil para as estaduais paulistas criarem um consórcio de bases de dados para mapearmos realmente quantas pessoas entram por cada um dos modelos. A gente não tem isso”, afirma Lima, do Cebrap. “A lei federal determina uma avaliação da implementação da política, e nem o Ministério da Educação tem as informações, muito menos montou uma ferramenta avaliativa de modo que toda a sociedade pudesse ter acesso, acompanhar, fazer críticas e propor aprimoramentos eventualmente necessários”, complementa Vicente.

 

Para piorar, os dados do Sistema de Seleção Unificada (SiSU) viraram um unicórnio, na descrição indignada de Lima. “Ainda mais nesse governo, ninguém que eu conheça consegue acessar os dados do SiSU. O pesquisador mais competente em dados que a gente tem para isso hoje é o Adriano Senkevicz porque ele trabalha no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais [Inep], então conseguiu cruzar a base do Enem com as bases das universidades e consegue fazer um trabalho que para nós, pesquisadores externos, é um processo muito complicado de fazer”. Outro imenso desafio é de caráter metodológico, uma vez que o Censo 2020, que teria propiciado um bom panorama, não foi realizado.

 

Ainda que a regulamentação da 12.711 não tenha traçado um desenho específico da avaliação da política e haja um vácuo sobre como será afinal de contas sua “revisão”, na esfera política estão se intensificando articulações para defendê-la, assim como para destruí-la. Em debate online realizado pela Unesp em setembro de 2021, Acácio Sidinei Almeida Santos, professor de Relações Internacionais e pró-reitor de assuntos comunitários e políticas afirmativas da Universidade Federal do ABC (UFABC), estimou que há 50 a 70 projetos de lei tramitando no Congresso Nacional que tanto objetivam aprimorar as ações afirmativas quanto simplesmente encerrar a política pública ou prorrogá-la por períodos variáveis. “É muito importante que a lei de cotas seja reforçada. No momento, a presença de pessoas negras nas universidades começa a ser demograficamente condizente com a porcentagem delas na população total do país. Todavia, as condições sociais e econômicas que ajudam a manter o racismo estrutural continuam todas aí, até se intensificaram como resultado do sofrimento maior da população negra durante a pandemia. A crise econômica só se aprofunda e não tem permitido que o maior acesso de parte da população negra ao ensino superior de qualidade se traduza em empregos de melhor qualidade”, avalia Sidney Chalhoub, professor da Unicamp e da Universidade Harvard (EUA) e especialista em História do Brasil no século XIX.

 

Para Teresa Atvars, professora titular do Instituto de Química e primeira coordenadora geral (vice reitora) da história da Unicamp, entre 2017 e 2021, a revisão da lei também traz uma oportunidade: a de as universidades reafirmarem a sua autonomia. “Se por um erro do Congresso a lei cair, as universidades continuarão com o sistema de cotas, porque essa opção foi tomada à revelia de lei no início, quando não tinha a lei. O assunto na minha visão está consolidado nas universidades públicas, não tem retorno.”

 

Acompanhando atentamente essa verdadeira revolução sem retorno no ensino superior do país e do estado de São Paulo, a FAPESP começa a encarar o debate sobre a conveniência de também se transformar, à semelhança de suas stakeholders. “A pergunta é – e para essa eu não tenho resposta ainda – se aqui também precisamos fazer uma intervenção como foi feita para o ingresso na universidade”, diz Zago. “Isso precisa ser discutido com todo o mundo acadêmico, e essa discussão não ocorreu ainda. Não estou dizendo que sou contra a proliferação de cotas nos mais diversos espaços, mas também acredito que em geral decisões em pontos críticos são suficientes. Agora, admito que é legítimo fazer uma discussão sobre ser ou não necessário acelerar o processo.”

 

LINHA DO TEMPO

 

1993Movimento pelas Reparações Já estima* que 3,6 milhões de africanos foram trazidos à força ao Brasil, gerando em quase 400 anos uma força de trabalho escravizada de 30,7 milhões de pessoas, com “vida útil” média de 20 anos, gerando 6,14 trilhões de dólares de receita aos escravizadores; considerando que em 1993 havia 60 milhões de descendentes de africanos escravizados (40% da população total do Brasil estimada pelo IBGE), a indenização justa por pessoa deveria ser de 102 mil dólares.

* partindo dos estudos de João Luís Ribeiro Fragoso e Manolo Florentino em O arcaísmo como projeto (editora Civilização Brasileira, 1958)

 

1996 – Governo brasileiro institui o primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos. O segundo foi publicado em 2002, dando maior ênfase aos direitos sociais – entre os quais a educação – e o terceiro, em 2009.

 

2001 – Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlatas na cidade de Durban, África do Sul, entre os dias 31 de agosto e 8 de setembro.

 

2002 – No dia 18 de julho, a Universidade do Estado da Bahia (Uneb) aprova no seu Conselho Superior a implementação do sistema de cotas para o acesso aos seus cursos de graduação e pós-graduação.

 

2003 – Primeiro vestibular com ações afirmativas étnico-raciais da UERJ e da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf). Em 2001 e 2002, leis aprovadas pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro haviam determinado o estabelecimento de cotas para egressos do ensino público e autodeclarados negros e pardos nas universidades públicas estaduais. A lei 4.151 de 2003 fixou 20% das vagas para estudantes oriundos da rede pública de ensino; 20% para negros e 5% para pessoas com deficiência e indígenas.

 

2004 – Entra em vigência o Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial da Universidade de Brasília (UnB), aprovado no Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão em 6 de junho de 2003. O plano estabelece que 20% das vagas do vestibular seriam destinadas a candidatos negros. A UnB torna-se a primeira federal a adotar cotas raciais em seus processos seletivos de ingresso na graduação.

 

2005 – Dagoberto José Fonseca, antropólogo da Faculdade de Ciências e Letras (Araraquara) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e coordenador de seu Núcleo Negro para Pesquisa e Extensão (Nupe) entre 2002 e 2007, publica uma carta aberta de 13 páginas sobre cotas raciais em 21 de março.

 

2008 – Mais de 80 instituições de ensino superior já empregam algum tipo de ação afirmativa, apesar do debate em torno da constitucionalidade da medida. Para universidades que adotaram ações afirmativas, utilizando os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2008, pesquisadores concluem que a avaliação de desempenho dos cotistas em relação aos não cotistas é próxima, similar ou até melhor. Na Federal da Bahia o coeficiente de rendimento de cotistas é igual ou superior aos demais em 11 de 16 cursos. Na UnB, os índices de aprovação de cotistas e não cotistas são similares (4 pontos percentuais de diferença).

 

2010 – Promulgada em 20 de julho a lei 12.288, que institui o Estatuto da Igualdade Racial

 

2012, 26 de abril – Em 26 de abril o Supremo Tribunal Federal (STF) decide por unanimidade que as ações afirmativas são constitucionais, derrotando o partido “Democratas” (antiga Arena, antigo PFL e atual União pelo Brasil, fusão DEM+PSL, partido pelo qual Jair Bolsonaro se elegeu presidente em 2018) na ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 186) contra cotas étnico-raciais adotadas pela UnB.

 

2012, 29 de agosto – É publicada a lei 12.711 no Diário Oficial da União, que institui a reserva de no mínimo 50% das vagas de cada turno e curso das instituições federais de ensino superior (IFES) para os estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas; metade desta fatia é reservada a estudantes de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo per capita; ainda daquela fatia, uma proporção variável por Estado será preenchida por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência no mínimo igual à sua proporção na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, com base no censo do IBGE mais recente disponível. O artigo 7º estabelece a avaliação da lei no prazo de dez anos a contar da data de sua publicação.

 

2012, 20 de novembro – Governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, lança o Pimesp, um programa de “inclusão com mérito” que estabelecia metas no lugar de cotas, previa um fundo de apoio à permanência e criava o Instituto Comunitário de Ensino Superior (ICES) envolvendo todas as instituições estaduais públicas de ensino superior. O ICES seria um curso de tipo sequencial de dois anos voltado para o desenvolvimento de estudos gerais de nível superior com uma distribuição das atividades didáticas 50% presencial e 50% a distância. A seleção seria pelas notas no Enem.

 

2013 – Em 27 de agosto a Unesp aprova resolução (nº 43) instituindo cotas étnico-raciais a partir do vestibular 2014. De 7.259 vagas, 15% (1.134) foram oferecidas aos estudantes que tinham cursado integralmente o ensino médio ou a educação de jovens e adultos em escolas públicas, e destas, 35% da vagas (391) foram destinadas aos candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas. A resolução prevê a ampliação dessas faixas nos anos seguintes.

 

2014 – Lei 12.990 reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.

 

2015 – A cientista Adriana Alves, professora do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP) especializada em mineralogia e petrologia, publica artigo de 9 páginas na revista da Associação de Docentes da USP (Adusp) em dezembro com um apanhado histórico de como a instituição vinha tratando –  ou ignorando – a questão da inclusão racial.

 

2017 – USP aprova em 4 de julho a introdução de políticas afirmativas na Fuvest 2018 e Sisu. Na votação no Conselho Universitário, 75 membros dizem sim ao sistema de cotas; 8, não e 9 se abstêm, totalizando 92 votos. Das vagas do vestibular da Fuvest 2018, 37% são destinadas aos alunos de escolas públicas. A cada ano a reserva de cotas deve subir, até atingir a meta, em 2021, de 50% das vagas destinadas ao sistema de cotas. As vagas reservadas para PPIs devem ser proporcionais à presença desses segmentos no Estado de São Paulo. Unicamp, que neste ano matricula metade de estudantes egressos da escola pública, aprova em 21 de novembro sistema de cotas para estudantes autodeclarados pretos e pardos, que começa a vigorar em 2019, mesmo ano em que ocorre primeiro vestibular indígena.

 

2018 – Unesp atinge a meta de 50% de ingressantes da escola pública mais pretos, pardos e indígenas.

 

2021 – Unicamp aprova em 30 de abril 20% de cotas étnico-raciais para concursos públicos de servidores da carreira de Profissionais de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão. USP atinge a meta de 50% de ingressantes oriundos da escola pública, incluindo PPIs.

 

2022 – Unicamp e UFSCar realizam vestibular indígena unificado.