10/01/2022

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A inovação em valorizar a inovação

clique aqui para a versão publicada em 28 de janeiro de 2022

 

O apoio ao empreendedorismo científico nas universidades e à inovação tecnológica nas empresas hoje é um dos preceitos fundamentais do trabalho da FAPESP. Mas não foi sempre assim. Essa missão adicional só foi oficialmente incorporada ao DNA mais acadêmico da Fundação quando esta já se aproximava dos seus 30 anos, em 1989, com a promulgação da nova Constituição paulista, que duplicou os recursos destinados à agência e consagrou em suas linhas que ela deveria se dedicar ao desenvolvimento científico “e tecnológico” do Estado. Foi uma evolução ousada (e controversa) para a época, consolidada tanto na esteira de uma grande virada no espírito do tempo” internacional quanto em reação a uma intenção explícita, local, de avançar sobre seu cofre – e até mesmo de partir a Fundação em duas. Acomodando a nova demanda com habilidade política e inteligência coletiva – sem comprometer sua missão histórica fundamental, de promover o avanço do conhecimento –, a inovação da FAPESP ao valorizar a inovação foi uma combinação virtuosa de respostas a pressões externas e resistências internas da própria comunidade científica paulista, com a implementação de iniciativas institucionais que já vinham sendo amadurecidas há anos no âmago da Fundação.

 

A FAPESP entrou em inovação não foi por boniteza, foi por precisão”, diz Guilherme Ary Plonski — professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) e da Escola Politécnica (Poli), ambas da Universidade de São Paulo (USP) —, citando uma das epígrafes do conto A hora e a vez de Augusto Matraga”, de João Guimarães Rosa (no livro Sagarana, publicado em 1946). Claro que hoje é boniteza, mas naquele momento foi por precisão”, brinca o engenheiro, que também dirige o prestigiado Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. A boniteza” se revela em resultados acumulados que, de fato, enchem os olhos, como o apoio à inovação em 1.633 pequenas empresas, em 153 municípios de São Paulo, desde 1997, e os 1.562 pedidos de patentes depositados no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) entre 2000 e 2020 (92 vezes mais do que o alcançado desde sua fundação), resultantes de pesquisas apoiadas pela FAPESP.

 

A precisão”, no sentido de necessidade premente, surgiu, entre outros fatores, de uma mudança radical de ares que se consolidou nos anos 90 do século 20. No campo internacional, era fresco e forte o legado do chamado Thatcherismo”, um receituário forjado pela líder conservadora britânica Margaret Thatcher, primeira-ministra do Reino Unido entre 1979 e 1990. A trilha da Dama de Ferro promoveu privatizações, redução do papel do Estado na economia, exaltação das virtudes do livre mercado e do individualismo. Casou à perfeição com o Reaganomics”, o cardápio similar de Ronald Reagan, que presidiu os Estados Unidos da América por dois mandatos, entre janeiro de 1981 e janeiro de 1989. Quando era governador da Califórnia, entre 1967 e 1975, Reagan chegou a propor como solução para os problemas orçamentários do estado que os contribuintes deixassem de financiar a curiosidade intelectual” nas universidades da costa oeste. Há certos luxos intelectuais que talvez pudéssemos dispensar”, declarou à época o ex-ator de Hollywood e expoente político do Partido Republicano — que veio a cortar, de fato, o orçamento das universidades estaduais.

 

As heranças de Thatcher e Reagan, magnificadas pelo legado da gigantesca crise econômica global dos anos 1970, contribuíram para um cavalo-de-pau em relação à doutrina que prevalecia sobre o campo da ciência e tecnologia desde o fim da 2ª Guerra Mundial, formulada pelo engenheiro Vannevar Bush, que chefiou o US Office of Scientific Research and Development (OSRD), órgão do governo americano que comandou o front de pesquisa e desenvolvimento dos Estados Unidos durante o maior conflito armado da história. Por encomenda do governo, em 1945, ele produzira um documento intitulado Science, the endless frontier” (Ciência, a fronteira sem fim) que viria a inspirar a criação da National Science Foundation (NSF) cinco anos depois. No texto histórico, o engenheiro propunha: A maneira mais simples e eficaz pela qual o governo pode fortalecer a pesquisa empresarial é apoiar a pesquisa básica e desenvolver talentos científicos”. Mas com orçamentos pressionados, os governos começaram a cobrar um retorno mais rápido dos investimentos públicos em ciência.

 

No estado de São Paulo, a situação em meados da década de 1990 era de um orçamento extremamente pressionado no curtíssimo prazo. Mário Covas assumiu o Palácio dos Bandeirantes em 1995, no lugar de Fleury Filho, com os cofres do estado profundamente depauperados. Sem recursos nem mesmo para cobrir a folha de funcionários com tranquilidade, o tucano foi atrás de alternativas para pagar as contas — e a Fapesp entrou na mira. Foi um sufoco. Houve uma pressão extremamente forte sobre a FAPESP. Você tem um cidadão no Palácio dos Bandeirantes tendo que pagar funcionário público sem dinheiro e no alto da Rua Pio XI [onde fica a sede da Fundação] uma entidade vinculada ao governo do Estado com o cofre abarrotado”, relata Plonski. Nesse ponto, ele lembra que a FAPESP só assume compromissos de médio e longo prazo quando sabe que tem recursos suficientes reservados em caixa para bancar os projetos até o final. Frequentemente essas reservas financeiras são mal interpretadas pela classe política como “dinheiro sobrando”, quando, na verdade, se trata de dinheiro já comprometido com iniciativas em curso. “Era até compreensível, pela situação de desespero. Não é que ele [Covas] não gostava da ciência”, avalia Plonski. Na hora do aperto,“qualquer dinheiro serve, não importa de onde venha”.

 

A reação da FAPESP não se limitou às tratativas jurídicas e políticas na linha do tira a mão da minha cumbuca”. Uma pequena força-tarefa de alto nível foi mobilizada por Alberto Carvalho da Silva, que fora diretor-presidente (de 1984 a 1993) e diretor científico da Fundação (entre 1968 e 1969, quando foi cassado pelo regime militar na esteira do Ato Institucional nº 5). Entre seus integrantes estavam Plonski e Bruce Johnson, da USP, mais os economistas Sandra Brisolla e André Furtado, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O objetivo era mostrar ao Palácio dos Bandeirantes que a pesquisa financiada pela FAPESP gerava produtos e soluções tecnológicas, além dos indispensáveis papers, artigos científicos e livros. A FAPESP nos cedeu as informações necessárias para fazermos a sequência, ou seja, mostrar o que acontecia depois que a Fundação financiou a pesquisa. Isso é algo que hoje é banal, mas naquela época, 1995, era novo para todo mundo, não só para o Palácio dos Bandeirantes, que achava que o trabalho da agência era muito bonito, bacana, cheiroso, mas não chegava à outra ponta”, relembra Plonski. Com o diagnóstico claro de que as pressões se incrementariam, foi compilado em caráter de urgência e de maneira discreta um conjunto de exemplos para ficar na gaveta da diretoria científica da Fundação. Na hora que alguém viesse pressionar era só dizer um minutinho, por favor, com licença’, e mostrar o dossiê. A ideia era, não de maneira sistemática, pegar alguns casos que pudessem servir, entre aspas, de cala-boca. Essa foi a primeira reação positiva, além daquela defensiva do tira a mão daqui.” Um dos casos que Plonski mantinha na manga era o de uma pesquisa realizada na Poli-USP que reduziu os casos de incêndio na construção civil, em projetos que utilizavam madeira, e foi incorporada como norma pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

 

A segunda reação positiva foi a criação de dois programas paradigmáticos da FAPESP: o de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite), em 1995, e o de Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), em 1997*. (Cerca de 20 anos depois seria criado, também, o programa dos Centros de Pesquisa em Engenharia, um upgrade do Pite que incorporou aspectos dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão, os também emblemáticos Cepids**). Tais programas balizaram a construção de uma relação sólida e próspera da comunidade científica paulista com o setor empresarial do Estado. Além da inventividade na concepção, formatação e implementação dos programas em si, houve a sabedoria diplomática em superar fortes resistências dentro da própria Fundação e da comunidade científica como um todo.

 

[*Mais informações sobre os programas Pite e Pipe nas outras reportagens deste fascículo]

[** Mais informações sobre os CPEs e Cepids no fascículo 4]

 

José Fernando Perez, diretor científico da FAPESP entre 1993 e 2005, relata no livro Fapesp 40 anos - Abrindo Fronteiras (Edusp, 2004), organizado e editado por Amélia Império Hamburger, que havia um temor dentro da comunidade científica, que se rebatia sobre o Conselho Superior da Fundação, de que os recursos da agência passassem a ser direcionados não mais para o ambiente acadêmico, mas para o desenvolvimento tecnológico em empresas, com prejuízo para a pesquisa básica. O dilema tinha se aguçado com o aumento da dotação orçamentária da FAPESP de 0,5% para 1% da receita tributária do Estado na Constituição paulista de 1989. Foi tomada a decisão sábia de não se fazer uma separação em uma FAPESP tecnológicae outra puramente científica’, cada uma com 0,5%. Isso teria sido um retrocesso”, conta Perez, no livro. Plonski lembra que houve, inclusive, movimentações no sentido de o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT, que ele dirigiu entre 2001 e 2006) assumir o fomento ao desenvolvimento tecnológico no Estado – ideias abortadas, graças à pronta mobilização da FAPESP.

 

Resolvido o impasse de quem cuidaria do que, a charada a ser solucionada era como participar do financiamento de projetos de interesse empresarial sem trair a missão institucional da FAPESP. Já na sabatina a que os candidatos a diretor científico foram submetidos pelo Conselho Superior da Fundação em 1993, Perez – ressaltando premonitoriamente que era imperioso que a FAPESP passasse a financiar tais projetos, pois já estamos atrasados” – definiu claramente o modelo que acabaria prevalecendo. Na entrevista eu dizia: devemos sim financiar esses projetos com empresas, desde que sejam desenvolvidos nas universidades ou institutos de pesquisa com os recursos da FAPESP sendo investidos apenas para os pesquisadores e que, da empresa parceira, seja requerida uma contrapartida da mesma ordem de grandeza do investimento da FAPESP”. Além da fórmula do cofinanciamento paritário, ou matching funds (que no caso das pequenas empresas não seria exigido, porque elas não têm a menor condição de fazê-lo”), reafirmou-se o princípio basilar pelo qual a existência de pesquisa é pressuposto indispensável para viabilizar o apoio da agência; ou seja, não é qualquer coisa que seja relevante para o desenvolvimento tecnológico que pode ser financiada”, sacramentou Perez.

 

As desconfianças da comunidade científica continuariam, embora com o tempo os resultados do modelo implementado por Perez tenham apaziguado as inquietações. Para Carlos Henrique de Brito Cruz, que sucedeu Perez como diretor científico da FAPESP por 15 anos (além de 6 anteriores como presidente e 2, como membro do Conselho Superior), essas preocupações e resistências, além de naturais, são úteis. Essa discordância sobre o valor do relacionamento com as empresas existe em praticamente todas as boas universidades do mundo”, diz o engenheiro eletrônico, formado pelo ITA e doutor em física pela Unicamp. Ele recorda que, quando a FAPESP estava montando o seu programa de bioenergia (Bioen), no início dos anos 2000, a Universidade da Califórnia em Berkeley discutiu um acordo grande com a empresa de petróleo BP para fazer um centro de pesquisa nessa área e alguns professores e estudantes discordantes quase invadiram a reunião do conselho universitário que ia discutir o contrato. Mas o debate sobre a conveniência ou a qualidade da interação das universidades com as empresas impede que se esqueça de algo fundamental: o relacionamento precisa considerar o interesse público. O debate garante que isso fica na pauta, porque a universidade não é para ser uma empresa de consultoria subsidiada pelo contribuinte para vender conhecimento a preço barato ou resolver um problema aqui e outro ali em uma semana. É uma organização que deve interagir com empresas quando essa interação contribuir para a melhor educação dos estudantes, para o avanço da pesquisa que se faz nas universidades, e aí a empresa resolve se tem benefício para ela, ou não, respeitadas essas pré-condições.”

 

A Unicamp, da qual Brito foi reitor entre 2002 e 2005, acabou se destacando como pioneira nesse tipo de relacionamento por conta de particularidades em sua constituição. A facilidade da Unicamp no assunto de relacionamento com empresas vem em boa parte dos anos iniciais, quando, na década de 70, vieram para a universidade vários professores que haviam trabalhado em empresas fora do Brasil. Por exemplo, para o Instituto de Física e a Faculdade de Engenharia vieram muitos que trabalharam nos Laboratórios Bell da AT&T. Outros de Stanford, onde também havia uma tradição de relacionamento com empresas, vieram para a Engenharia Elétrica. Essas pessoas tinham uma visão sobre a pesquisa nas empresas que era benigna, de oportunidades para a pesquisa avançada.” Coincidentemente, nessa época estava sendo criada a Telebrás, e esses pesquisadores vindos do exterior tinham, todos eles, expertise em áreas relacionadas às telecomunicações. “Então ficou fácil criar uma colaboração que foi muito virtuosa, de resultados; e entre os resultados está essa tradição de valorização que a Unicamp passou a dar para o relacionamento em pesquisa com empresas”, conclui Brito Cruz.

 

Os marcos dessa tradição podem ser expressos em uma série de iniciativas. Quase 20 anos antes de fundar sua atual agência de inovação, a universidade constituiu uma Comissão Permanente de Propriedade Industrial (1984). Depois vieram o Escritório de Transferência de Tecnologia (ETT, 1990) e o Escritório de Difusão e Serviços Tecnológicos (1998). “O ETT nós criamos logo no primeiro ano da minha gestão como reitor. No ano seguinte, criamos o Fórum Universidade-Empresa (Uniemp)”, conta Carlos Vogt, presidente da FAPESP entre 2002 e 2007 e reitor da Unicamp entre 1990 e 1994. “Eu mantinha relacionamento com parte do empresariado paulista, e mesmo de fora de São Paulo, buscando promover aproximação entre universidade e empresa em uma época em que essas relações eram muito difíceis. O empresariado via a universidade como um reduto de pessoas interessadas em pesquisa e conhecimento sem nenhuma praticidade ou utilidade, e as universidades viam o setor empresarial como interessado em lucro e mais nada.”

 

No dia da inauguração do ETT comparecerem vários empresários, entre eles Edson Vaz Musa, presidente da Rhodia no Brasil, José Mindlin, da Metal Leve, e Hermann Wever, da filial brasileira da Siemens. “Depois da cerimônia nós conversamos e surgiu a ideia de criar um instituto apoiado financeiramente por parte desse empresariado, com apoio institucional de universidades. Aí nasceu o Uniemp. Várias outras empresas aderiram, como Bosch, Weg e Gerdau. Não foi uma iniciativa só da Unicamp, envolveu USP, Unesp, UFSCar, UFSC e várias outras pelo Brasil. A relação foi se consolidando e as universidades foram desenvolvendo seus mecanismos próprios de gestão dessas relações. O Uniemp foi perdendo função, mas teve um papel importante ao tematizar essa questão como necessidade fundamental para o desenvolvimento econômico e social do país.”

 

Dessa sequência de iniciativas nasceu a Agência de Inovação da Unicamp (Inova), em 2003, que chegou à maioridade, em 2021, com mais de 1.200 patentes registradas, com 170 contratos de licenciamento vigentes, e 1.131 empresas-filhas cadastradas, somando quase 39 mil profissionais empregados e R$ 16 bilhões em faturamento*. Entre 1982 e 2020, considerando pesquisas apoiadas pela FAPESP, a Unicamp foi a instituição que mais depositou pedidos de patentes (550), seguida pela USP (477), Unesp (171), Instituto Butantan (93), UFSCar (92), Unifesp (43), UFABC (28) e IPT (16).

 

[*Dados atualizados até outubro de 2021.]

 

A Fundação criou programas que acabaram dando vazão enorme à grande qualificação de recursos humanos que nós temos no estado de São Paulo. Antes, quem se formava no doutorado tinha necessariamente de dar aula; agora, pode ir para uma empresa ou formar uma empresa, então o contexto sempre foi de ampliar e melhorar o aproveitamento de pessoal altamente qualificado”, diz Vanderlei Salvador Bagnato, professor titular do Instituto de Física de São Carlos e ex-diretor da Agência USP de Inovação (2011-2018). Ficou claro que o investimento nas ciências aplicadas não estava chegando em detrimento do avanço na ciência básica, tanto é que nunca faltaram recursos para projetos bem qualificados que chegaram à FAPESP. Nos Cepids, por exemplo, a geração de ciência básica acabou sendo o pilar que sustenta inovação e difusão”, completa Bagnato, que trabalha com aplicações da física atômica nas ciências da saúde e dirige o Centro de Pesquisas em Óptica e Fotônica (Cepof), um Cepid da FAPESP, baseado em São Carlos. “A agência conduziu o processo de tal maneira que a gente pudesse fazer aquilo em que sempre acreditou: para fazer aplicação tem de ter os fundamentos, ninguém sai aplicando o que não conhece.”

 

Educação é fundamental para o desenvolvimento e imprescindível para a produção de bens high-tech. Mas educação sem políticas voltadas para o setor produtivo gera fuga de cérebros”, diz o economista Paulo Gala, professor da Fundação Getúlio Vargas e autor do livro Complexidade econômica (editora Contraponto / Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, 2017). Se não temos empresas que demandam profissionais qualificados, vários sairão do país para trabalhar onde sua expertise é demandada, completa Gala. Não adianta uma universidade excelente, de qualidade, categoria, nível internacional – as paulistas são tudo isso – se você não tem a outra perna do jogo”, diz Luiz Gonzaga Belluzzo, professor do Instituto de Economia (IE) da Unicamp, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (de 1985 a 1987) e de Ciência e Tecnologia de São Paulo (1988 a 1990), que foi um ator fundamental nas articulações políticas que levaram à constitucionalização da receita de 1% da FAPESP, em 1989.

 

Os exemplos bem-sucedidos de inoculação de ciência nessa “outra perna do jogo” são muitos. Na área de óptica, que é onde eu trabalho, não há dúvida, se hoje o Brasil tem empresas consideradas de alto padrão, em Campinas, São Carlos, São José dos Campos, é porque houve uma abertura para o desenvolvimento tecnológico dessas áreas”, afirma Bagnato. “O estado de São Paulo foi o primeiro a fabricar laser, o primeiro a fabricar componentes para a área de telecomunicação óptica, e isso tudo veio pelo preparo que a FAPESP viabilizou a partir da década de 2000, quando começou realmente a fazer investimento pesado em tecnologia.”

 

Só com a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), Elson Longo, professor titular do Departamento de Química da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e diretor do Centro de Desenvolvimento de Materiais Funcionais (CDMF, outro Cepid mantido pela FAPESP), desenvolveu cerca de 45 projetos ao longo da carreira. Seu primeiro projeto em parceria com a indústria foi com a Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM), em 1985. Os resultados da pesquisa deram origem a um novo produto, citrato de nióbio, que resultou em uma patente”, relata Longo. E não parou por aí: a CBMM apoiou a construção do edifício Niobe, no campus da UFSCar, que veio a abrigar o Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica (LIEC) — um centro de referência em pesquisa de novos materiais que, mais tarde, se transformaria no CDMF. “Aos poucos, fomos agregando vários alunos interessados em participar das pesquisas tecnológicas desenvolvidas ali”, afirma Longo.

 

O físico Oswaldo Massambani, professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP e fundador e diretor (2010 a 2017) da agência de inovação do Centro Paula Souza, destaca a crescente ênfase na criação dos ambientes de inovação – incubadoras, aceleradoras e parques tecnológicos. “É notório o crescimento que temos experimentado com o desenvolvimento da cultura da inovação e do empreendedorismo, expresso pelo surgimento de relevantes unicórnios [startups com avaliação de mercado superior a US$ 1 bilhão] e uma crescente ênfase na criação desses ambientes de inovação”, diz Massambani, que também foi idealizador e primeiro coordenador da Agência USP de Inovação (Auspin).

 

Desde a sua criação, em 2005, a Auspin implementou uma rede de quatro incubadoras e um parque tecnológico, que já deram abrigo a mais de 500 empresas de base tecnológica, e organizou um cadastro com mais de 1.500 empresas criadas por alunos, ex-alunos e pesquisadores da instituição, que passaram a ser reconhecidas com o selo “DNA USP”. Essas empresas, segundo a agência, já geraram mais de 38 mil postos de trabalho, com um faturamento estimado de R$ 16 bilhões, em 2020. Unesp, UFSCar, Unifesp e UFABC também possuem suas próprias agências de inovação, encarregadas de promover o empreendedorismo, supervisionar o patenteamento de invenções e licenciá-las para uso público ou exploração econômica.

 

O engenheiro Edgar Dutra Zanotto, professor titular sênior do Departamento de Engenharia de Materiais da UFSCar, ressalta que a inovação no Brasil é feita por algumas poucas empresas grandes, como Embraer, Petrobrás, CBMM e Weg, e uma miríade de pequenas empresas. Tem poucas grandes que inovam, mais um monte de pequenas inovadoras. E dessas muitas, mas muitas mesmo, a imensa maioria está aqui no estado de São Paulo e se viabilizou graças à FAPESP”, diz Zanotto, que coordena o Centro de Pesquisa, Educação e Inovação em Vidros (CeRTEV, outro Cepid FAPESP com sede na UFSCar) e preside o conselho de curadores da Fundação Parque de Alta Tecnologia de São Carlos (ParqTec), fundada em 1984. A taxa de mortalidade de pequenas empresas é muito grande. Se pegar a média mundial, só 5% a 10% das empresas nascentes de alta tecnologia sobrevivem. Aqui no ParqTec mais de um terço sobrevive, e muitas dessas que sobrevivem é com o apoio do PIPE, programa fantástico e absolutamente essencial da FAPESP, que entra naquela etapa crítica em que não há dinheiro, mantendo o pagamento do pesquisador, a compra de equipamentos indispensáveis etc.”

 

Zanotto substituiu Alcir Monticelli em 1995 como coordenador adjunto de engenharia na FAPESP, permanecendo na função até 2005. Participei ativamente desse negócio de criar editais e de analisar projetos que eram submetidos, indicar assessores ad hoc para avaliar e até visitar empresas pessoalmente, a pedido do Perez”, conta. Monticelli, falecido em 2001, aos 54 anos, foi quem apresentou o modelo do PIPE à diretoria científica da Fundação (mais informações na terceira reportagem deste fascículo). Ele era carinhosamente conhecido como “professor Pardal”, em referência ao personagem dos quadrinhos da Disney, célebre por suas invenções.

 

Em 2000, Zanotto foi responsável pela implantação do Programa de Apoio à Propriedade Intelectual (PAPI) e do Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) — braço executivo do programa —, com o objetivo de consolidar uma cultura de patenteamento, licenciamento e transferência de tecnologia em projetos apoiados pela FAPESP junto às instituições públicas de pesquisa e empresas. O programa funcionou por mais de duas décadas, até ser encerrado em junho de 2021, com a justificativa de missão cumprida. Com a Lei de Inovação, de 2004, e os aperfeiçoamentos na legislação aprovados em 2016 com o chamado Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação (Lei 13.243/2016), universidades e centros de pesquisa assumiram o protagonismo da proteção à propriedade intelectual por meio de seus Núcleos de Inovação Tecnológica (NITs). O Nuplitec segue funcionando, responsável pela observação e implementação das políticas de propriedade intelectual da FAPESP.

 

As pressões externas pela entrega de “resultados práticos” da pesquisa científica vão e voltam de acordo com as marés políticas, ideológicas e econômicas do momento. Mas a valorização do empreendedorismo, da inovação e das parcerias público-privadas já é algo profundamente ancorado na cultura da FAPESP, que segue ampliando suas iniciativas de colaboração entre empresas, instituições de pesquisa e poder público. Existe um círculo virtuoso em que o desenvolvimento econômico do estado permite mais pesquisa, que permite mais arrecadação, que permite mais emprego e por fim mais recursos para pesquisa. A FAPESP contribuir para o desenvolvimento do estado de São Paulo é fundamental inclusive para a própria ampliação da atividade da FAPESP,” destacou o atual diretor científico da Fundação, Luiz Eugênio Mello, professor titular da Unifesp, em um evento organizado pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação da USP, em maio de 2021.

 

Para os cientistas que já têm a inovação incorporada ao seu DNA, os desafios e a inquietação não terminam nunca. Bagnato, por exemplo, quer desenvolver novos equipamentos para a área da saúde. “Vamos investir nisso, tentar produzir mais barato. Tenho também me preocupado com insumos na área farmacêutica. E o que nós vamos fazer? Vamos insistir e pesquisar, e a FAPESP tem nos dado essa abertura, como sempre fez.”