20/04/2019

Reforma da Previdência

Previdência, três mitos e um problema

A luta que deve ser travada é para garantir bolsas de reciclagem de conhecimentos para que os trabalhadores possam se requalificar em várias etapas da vida e garantir que os ganhos de produtividade sejam usados para reduzir o período laboral e antecipar a aposentadoria.

José Luis Fevereiro*

 

A busca de superávits por parte da União só será possível impondo déficit ao setor privado (empresas e famílias) e aos estados e municípios. Só que estes não podem conviver com déficits continuados porque nesse caso quebram. O debate em torno da proposta de reforma da previdência apresentada pelo governo Bolsonaro repousa sobre três mitos. O primeiro deles, que o Brasil vive uma crise fiscal e que é imprescindível equilibrar o orçamento. O mito do “orçamento equilibrado” da União contamina o senso comum e até parte da esquerda. Na base disso está a mistificação sobre o que é dívida pública soberana em moeda nacional e a incompreensão sobre o que é a moeda fiduciária, não lastreada em metais preciosos. Nestas circunstâncias, a moeda e a dívida pública são créditos da sociedade face ao Estado e são muito semelhantes entre si. A dívida na prática é a moeda remunerada. Ambas intercambiáveis entre si. Moeda e dívida podem ser trocadas uma pela outra. Dívidas em moeda nacional são solventes por definição, já que o Estado emite a moeda na qual é denominada a dívida. A dívida funciona como regulador da liquidez da economia e portanto como controle da demanda.

 

Entendendo a União como um agente econômico, os estados, municípios, empresas e famílias como os outros agentes, a diferença fica clara. As dívidas desses últimos quatro agentes econômicos são contraídas em reais que estes não emitem. Logo, para estados, municípios, empresas e famílias, a busca do equilíbrio orçamentário faz todo o sentido. Como a despesa de um agente econômico é a receita do outro, fica fácil de entender que se um agente é superavitário outro terá que ser deficitário. Em condições normais, o único agente econômico que pode conviver com déficits a longo prazo é a União, porque ela detém o monopólio da emissão de moeda e portanto é solvente por definição. A busca de superávits por parte da União só será possível impondo déficit ao setor privado (empresas e famílias) e aos estados e municípios. Só que estes não podem conviver com déficits continuados porque nesse caso quebram. As políticas de ajuste fiscal em curso desde 2015 buscam tratar de um falso problema que é o déficit público da União, mas acabam por criar um problema real que é o déficit das empresas, famílias, estados e municípios. Essa é a verdadeira crise.

 

Os economistas liberais, exceção seja feita aqui a Lara Resende que vem apontando isso em recentes artigos, insistem nessa tese absolutamente refutada pelos fatos mas encontram coro em parte da esquerda que também opera na logica do “ajuste”. Parte dela defende um ajuste da mesma natureza dos liberais só que com menor teor de maldade, com regras menos draconianas, com parte do ajuste sendo feito pela elevação de tributos. Estes governaram o Brasil de 2003 a 2014 e produziram superávits fiscais primários em todos os anos com exceção do último. A partir de 2015 veio a turma heavy metal. Austericídio na veia sem anestesia. Outra parte da esquerda, tão patusca quanto, defende o ajuste via calote no todo ou em parte da dívida pública, não entendendo o seu caráter de quase moeda, de poupança privada, e a inconsequência de calotear uma dívida em moeda que o devedor emite. As evidências são de que déficits fiscais são o normal e que o único limitador à expansão dos gastos públicos é a capacidade produtiva instalada e, portanto, a qualidade do gasto e sua adequação para cumprir a função de alavancar a economia. Com 30% de capacidade ociosa na indústria e 30 milhões de desempregados e subempregados, o Brasil precisa de um choque de gastos federais capaz de elevar a atividade econômica e gerar receita adicional para estados, municípios, empresas e famílias. Para isso é central revogar a Emenda Constitucional 95 do Teto dos Gastos. O Brasil não precisa de reforma da previdência para ajustar contas públicas federais.

 

A projeção para 2030 é de 55 inativos para 100 em idade produtiva, índice semelhante ao de 2010. A relação ativos/inativos não representa nenhuma ameaça.O segundo mito em torno desse debate reside na curva demográfica. A percepção de que a expectativa de vida aumenta e portanto a sobrevida após a aposentadoria aumentará também leva a que emplaque no senso comum a ideia de que os trabalhadores devem contribuir por mais tempo, prolongando seu período laboral por mais alguns anos. Parece sensato e lógico, só que essa conta tem que ser feita não em termos da relação de aposentados / trabalhadores ativos, mas por população inativa versus população ativa. Considerando-se como população inativa menores de 15 anos e maiores de 60 anos, os dados mostram que em 1940 para cada 87 pessoas inativas tínhamos 100 em idade ativa. E 1960 eram 90 inativos para cada 100 em idade produtiva. Em 2000 eram 55 em idade inativa para 100 em idade produtiva e a projeção para 2020 é de 50,9 em idade inativa para 100 em idade produtiva. Ou seja, nunca na nossa história a curva demográfica foi tão favorável. A projeção para 2030 é de 55 inativos para 100 em idade produtiva, índice semelhante ao de 2010. Se os gastos relativos à manutenção de uma população com mais idosos aumenta, os gastos relativos a uma população com menos jovens diminui. A relação ativos/inativos não representa nenhuma ameaça. O Brasil não precisa de uma reforma da previdência para se adequar às mudanças demográficas.

 

Associado a esse mito vem outro de natureza moral que é a ideia de que se você vai se beneficiar por mais tempo de uma aposentadoria é justo que trabalhe e contribua mais tempo. Esse apelo de fundo moral não se sustenta na realidade. Em um país onde 30 milhões de pessoas estão no desemprego, no desalento ou no subemprego, por óbvio que não falta gente para trabalhar mas o que falta é trabalho para a nossa gente. Não há considerações morais que sobrevivam à realidade objetiva da economia. O Brasil não precisa de uma reforma da previdência para aumentar a oferta de gente para trabalhar.

 

O problema real a ser enfrentado diz respeito às mudanças no mundo do trabalho e seu impacto na seguridade social. A revolução tecnológica em curso que já eliminou boa parte dos postos de trabalho na indústria começa a chegar aos serviços. Lojas físicas sem funcionários no atendimento já são uma realidade. Caixas de supermercado automatizados, aplicativos de celular que substituem com maior índice de acerto consultas médicas, aplicativos substituindo o trabalho de advogados, contadores em extinção, comércio virtual com faturamento maior que o comércio com espaços físicos de atendimento, obsolescência de saberes se acentuando, ensino a distancia, consultas médicas a distancia, esta será a nova realidade. Um passeio pelo centro das nossas grandes cidades mostra a enorme quantidade de imóveis comerciais para aluguel ou venda. Não serão nem alugados e nem vendidos. Seu destino será a readequação para habitação. Cada um desses espaços fechados são postos de trabalho que desapareceram. Os ganhos de produtividade serão enormes e a disputa que se abre é sobre a sua apropriação.

 

Com a velocidade das transformações tecnológicas é impensável imaginar sexagenários daqui a 30 anos concorrerem no mercado de trabalho. Prolongar a vida laboral será trocar aposentados por desempregados. A 1ª revolução industrial conviveu com jornadas de trabalho de 16h/dia. A luta dos trabalhadores pela redução da jornada era acompanhada de ameaças de quebra das empresas que “não sobreviveriam” a jornadas de 10h/dia. Quando o governo de Leon Blum do Front Populaire instituiu na França em 1936 as férias remuneradas, imperativos “morais” foram usados para o combater. A remuneração sem o trabalho correspondente era deseducativa, moralmente indefensável e, claro, levaria as empresas à falência. Agora em 2019, quando estamos no limiar de uma revolução tecnológica nos serviços que poupará muito trabalho, o conflito é da mesma natureza. A economia política do mundo do trabalho versus a economia política do capital terão seu campo de batalha travado na duração das jornadas de trabalho e no período laboral durante a vida. Não se trata apenas de discutir idade de aposentadoria mas todo um sistema de trabalho em rápida mutação. Gerações da primeira metade do século 20 passavam saberes profissionais entre si. Avô, pai e neto trabalharam nas ferrovias, nas minas, ou nas metalurgias dominando saberes que evoluíam lentamente. Profissões eram repassadas entre gerações. A minha geração, formada na década de 80, ainda tinha a fundada expectativa de ter adquirido saberes que lhe garantiriam a subsistência por toda a vida. Hoje, gerações que concluam sua formação profissional aos 25 anos terão saberes que talvez os sustentem por 10 anos antes de se tornarem obsoletos. A rápida transformação tecnológica obrigará a períodos recorrentes de reciclagem profissional dentro e fora da área original de trabalho. A capacidade de aprender constantemente, de adquirir novas tecnologias será central para que os trabalhadores possam manter seu padrão de vida.

 

As capacidades cognitivas do ser humano de adquirir novos saberes são decrescentes no decorrer da vida. Com a velocidade das transformações tecnológicas é impensável imaginar sexagenários daqui a 30 anos concorrerem no mercado de trabalho. Prolongar a vida laboral será trocar aposentados por desempregados. O debate sobre seguridade social que tem que ser feito é na lógica oposta. É no sentido de garantir bolsas de reciclagem de conhecimentos para que os trabalhadores possam se requalificar em várias etapas da vida e garantir que os ganhos de produtividade possam ser usados para reduzir o período laboral antecipando a aposentadoria.

 

Este é o debate sobre seguridade social que deveria estar na agenda. Esta é tarefa da esquerda consequente.

 

* José Luis Feveriro é economista formado pela UFRJ. Foi secretário geral do Partido dos Trabalhadores no estado do Rio de Janeiro de 1989 a 1993 e membro da executiva nacional do PT de 93 a 95. Desde 2007, é membro da direção nacional do PSOL.