24/04/2014

Carta Maior

O cerco

A vitoriosa construção do Marco Civil da Internet deveria servir de referência para uma mudança de postura que já tarda. É hora de estender o método.

Saul Leblon

 

Replicados com disciplinado zelo pela emissão conservadora, disparos regulares da mídia internacional defendem a rendição inapelável do Brasil aos ditames da restauração neoliberal. O tom é de ‘basta!’. Explica-se: a dissidência brasileira na crise afrontou com sucesso o sopro de morte da austeridade optando por políticas contracíclicas baseadas em crédito estatal, investimentos públicos (PAC 2),  fomento à habitação, valorização do poder de compra do salário mínimo e geração de empregos.

A dissidência brasileira na crise afrontou com sucesso o sopro de morte da austeridade optando por políticas contracíclicas baseadas em crédito estatal, investimentos públicos (PAC 2), fomento à habitação, valorização do poder de compra do salário mínimo e geração de empregos. O saldo gerou uma inércia de demanda e geração de empregos que resiste até hoje como uma gigantesca costela de pirarucu entalada na garganta dos mercados. Se isso funciona, como é que fica a restauração neoliberal aqui e na América Latina? É preciso desqualificar um passado que pode ser usado para credenciar novas heterodoxias no futuro e, sobretudo, nas urnas. Chegou a hora de colocar as cordas, os pescoços e as agendas nos devidos lugares, diz o jogral que nunca desafina.

Ponto número um: o Brasil é um grandioso caso de desastre intervencionista. Ou não é isso o que  reafirma o caso da refinaria de Pasadena, agora brindado com a obsequiosa decisão da juíza Rosa Weber de criação de um palanque nacional para a mídia e seus candidatos execrarem a Petrobras em plena campanha sucessória?

Ponto número dois: o país deve aceitar os termos da rendição incondicional que a emissão conservadora local e forânea  advoga diuturnamente. A  saber: fim da intervenção estatal na agenda do desenvolvimento; choque de juros "para trazer a inflação à meta"  - conduzido por um BC "independente" (das urnas); esvaziamento do BNDES, privatização do pré-sal (tese que ganha agora uma corneta de difusão eleitoral, graças à CPI); câmbio livre, arrocho na "gastança social" etc.

O tom imperativo da ofensiva estrangeira remete ao jornalismo da guerra fria contra governos não alinhados, nos anos 50/60. Três exemplos dos últimos quinze dias:

Financial Times: Nova matriz econômica do Brasil ouve anúncio de morte (07/04/2014)
The Economist: Trabalhador do Brasil é gloriosamente improdutivo (17/04/2014 )
New York Times: Brasil grandioso se desfaz (21/04/2014)

O denominador comum é a incompatibilidade entre "dirigismo" estatal e "gastança fiscal" (assim, vinculados, como xipófagos), e redução do juro para a retomada do investimento. Como na guerra fria, o silogismo é ilustrado não raro com exemplos grotescos. Filas no recente Festival de Música Lollapalooza, em São Paulo, abrem a "reportagem" da Economist, por exemplo, para ilustrar a evidência da  improdutividade do trabalhador brasileiro. Coisas de mercado regulado, naturalmente.

O saldo gerou uma inércia de demanda e geração de empregos que resiste até hoje como uma gigantesca costela de pirarucu entalada na garganta dos mercados. Se isso funciona, como é que fica a restauração neoliberal aqui e na América Latina? Segundo a bíblia do jornalismo neoliberal, "onde o restaurante texano BOS BBQ se destacava pela eficiência, nas outras barracas de comida do evento (as nacionais) as filas se acumulavam de forma ilustrativa". Isso define um país de ineficientes para a  Economist. "No momento em que você chega ao Brasil você começa a perder tempo", dispara, na reportagem transcrita pelo jornal Valor Econômico, o dono do restaurante gringo, Blake Watkins. Ele chegou aqui  há três anos, após vender um fast food em Nova York. Parece ter tomado gosto pela "perda de tempo". O mesmo gosto que leva o capital estrangeiro a maldizer as interferências excessivas do Estado no mercado local. E a formar filas para ingressar nesse limbo de anancronismo estatizante, cujo segmento de consumo de massa (53% da população), sozinho, representaria hoje a 16ª maior economia do planeta. Com lugar garantido no G-20.

Um punhado de bancos estrangeiros enquadra-se nessa categoria, dos que aguardam  autorização para operar no reduto da improdutividade e do intervencionismo desastrado. O  governo Dilma autorizou o ingresso médio de quase 8 bancos por ano desde 2011. Mas  só autoriza  se ficar demonstrado o interesse nacional na operação. Dilma costuma perguntar, por exemplo,  o que o banco fará pelo financiamento de longo prazo, indispensável a um novo ciclo de desenvolvimento. A Presidenta faz o que determina o interesse público. E o que determina o interesse  público incomoda quem se avoca o direito a uma free-way para entrar e sair do país quando quiser, como quiser e com quanto quiser. A soberba tem o  apoio de um colunismo  ignorante no varejo e prestativo no atacado.

 

Esse gelatinoso ectoplasma de interesses compartilha de um segredo cuidadosamente mantido a sete chaves, fora do alcance da opinião pública brasileira. Afinal, o  que acontece exatamente quando uma economia adota – ou lhe é imposto – o pacote de medidas às quais a teimosia petista resiste em associar o destino nacional? Se a emissão conservadora dedicasse a essa resposta algum vapor de jornalismo isento, o debate em torno da sucessão presidencial certamente ganharia a densidade adequada a um  escrutínio esclarecido sobre o  passo seguinte do desenvolvimento do país.

É preciso desqualificar um passado que pode ser usado para credenciar novas heterodoxias no futuro e, sobretudo, nas urnas. Chegou a hora de colocar as cordas, os pescoços e as agendas nos devidos lugares, diz o jogral que nunca desafina. Um ponto de partida poderia ser a dissecação do que se passa em economias europeias, enredadas em desconcertante combinação de "recuperação"  e esfarelamento social. A Grécia, por exemplo. Mergulhada no sexto ano de recessão, com um PIB 24% inferior ao de antes da crise, o país é saudado como paradigma de sacrifício bem-sucedido. Em 2013, a Grécia conseguiu, de fato, um superávit fiscal de 1,2%  do PIB (repita-se, sobre um PIB que perdeu ¼ de sua massa desde 2008). A que preço? A taxa de desemprego é de 27%. Cerca de  2,3 milhões de um total de 2,8 milhões de lares gregos acumulam dívidas tributárias impagáveis, por absoluta insuficiência de renda. O déficit fiscal não para de crescer e a dívida pública passa de 180% do PIB – bem distante dos 120%  que o generoso FMI definiu como a fronteira da sustentabilidade a ser perseguida por Atenas. Não só. A taxa de investimento na Grécia despenca linearmente desde 2008 e o déficit fiscal é de 12% do PIB. O resto é deduzível.

A Grécia é aquele lugar em que as crianças passam fome na rede pública por falta de merenda escolar. E a extrema direita persegue imigrantes pelas ruas, não raro até a morte. Na semana passada, esse féretro civilizatório foi ao mercado e conseguiu captar empréstimos nos valor de três bilhões de euros, com uma procura por títulos da dívida grega quase sete vezes superior à oferta. O que leva a festejada racionalidade do mercado a se lambuzar em papéis de uma nação insolvente, colapsada em seus fundamentos, às voltas com uma sintomática deflação de preços e sem tônus para se reerguer a partir de suas próprias forças produtivas e de consumo?

Antes da Grécia, Portugal e Espanha (esse, outro colosso de recuperação assentada em 26% de desemprego, déficit fiscal de 7% do PIB e dívida pública de 94% do PIB) já haviam tido sucesso semelhante em captações no mercado financeiro internacional. A resposta ao enigma  ajuda a entender não apenas o que acontece por lá, mas sobretudo a consistência do cerco aqui, em torno do Brasil.

A recuperação grega é uma experiência de laboratório tanto quanto a tese do Brasil aos cacos é uma construção midiática. Viabilizar a Grécia ajoelhada aos mercados é tão necessário  quanto acuar um Brasil reticente às exigências de um  ajuste mais duro preconizado pelo interesse rentista local e internacional. A captação realizada pela Grécia – a exemplo das demais – na verdade foi um investimento tutelado e garantido por bancos alemães, britânicos e pelo FMI. Não há vínculo de confiança em relação a Atenas.

Antes, trata-se de uma adesão, sem risco, a uma oferta do sistema financeiro interessado em provar que o austericídio grego deu certo. A hora escolhida foi cirurgicamente selecionada: há liquidez abundante no mercado internacional. E  limitadas são as opções de risco que permitam sair do círculo vicioso de um rentismo que se ergue, cada vez mais perigosamente, pelos próprios cabelos.

Alternativas  de canibalização de mais valia, como os investimentos em infraestrutura ensejados pela ampliação do mercado interno brasileiro, são raridade no mundo pós-crise. Num mercado achatado pela desordem neoliberal, o principal déficit ainda é o déficit de demanda. E o maior desafio: devolver às economias a capacidade de gerar  emprego e renda.

 

Grécia e Brasil ocupam polos opostos nessa tipificação, mas carregam no calendário político uma equação de delicadeza semelhante. Uma nova vitória do PT no Brasil, em outubro, sancionaria a existência de um dissenso bem-sucedido no âmbito da restauração neoliberal em marcha no mundo. Seus  desdobramentos encorajadores na América Latina são óbvios. E daí para as demais nações em desenvolvimento, a progressão seria inevitável.

Na Grécia, ao contrário, a direita no poder, encabeçada pela Nova Democracia, tem um encontro com o desalento social dia 25 de maio, nas eleições municipais. Se derrotada, engrossa o mesmo recado subjacente à reeleição de Dilma, cinco meses depois. O partido de esquerda grego, o Syriza,  disputa a liderança nas enquetes de intenção de voto. Uma derrota conservadora em maio abriria uma grande avenida  para o Syriza construir alianças que o qualifiquem a disputar como favorito as eleições presidenciais de fevereiro de 2015.

Uma última palavra merece ser dita diante do que  aparenta ser uma  certa prostração do governo e do PT face ao cerco conservador.

A direita politizou definitivamente o debate econômico espetando nos desafios macroeconômicos sua rotulagem ideológica. "Intervencionismo, ineficiência e corrupção" formam o tripé  de um mantra repetido à exaustão pelo dispositivo midiático para qualquer tema ou circunstância. Será assim também na CPI da Petrobrás. O tratamento economicista muitas vezes adotado pelo governo nem responde à radicalização do embate, nem elucida a verdadeira natureza dos interesses em conflito.

A vitoriosa construção do Marco Civil da Internet deveria servir de referência para uma mudança de postura que já tarda. Longe de tecnificar o assunto, o governo neste caso se ancorou em uma ofensiva política interna e externa, democratizou o debate, arregimentou grandes adesões, mobilizou  movimentos sociais e tornou indefensável a defesa do lucro corporativo  contra o interesse da cidadania. Sobretudo, o governo exibiu neste caso duas qualidades em falta nos demais: unidade de ação e determinação política de não escamotear a colisão de interesses em jogo.

É hora de estender o método a outras esferas. A começar pela defesa da Petrobrás.