31/03/2014

50 anos do golpe

Jango e Salvador Allende, seguidores da letra da lei, viraram os golpistas e os golpistas, os legalistas!

Soam patéticas as tentativas de encontrar o "lado bom" da ditadura militar (como fazem a Folha e o Estadão)

Ricardo Melo
Pergunta: "Quantas pessoas o senhor matou?"
 
Coronel reformado Paulo Malhães: "Tantas quantas foram necessárias."
 
P: "Arrepende-se de alguma morte?"
 
Malhães: "Não."
 
P: "Quantos torturou?"
 
Malhães: "Difícil dizer, mas foram muitos."
 
Criticada pela timidez das investigações, acusada de produzir mais barulho do que resultados, a Comissão Nacional da Verdade redimiu-se, ao menos em parte, ao entrevistar Malhães, torturador assumido e participante ativo da ditadura instalada no Brasil em 1964. O depoimento aconteceu no dia 25 de março passado. O militar já tinha oferecido uma avant-première aos jornais "O Dia" e "O Globo". Na comissão, recuou quanto à sua participação no desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, assassinado pela ditadura em 1971. Sem convencer, é claro.
 
A resistência quase inexistente aos soldados de Mourão Filho não atesta um suposto apoio popular aos militares; prova que não havia nenhum esquema alternativo da parte do governo constitucional. O depoimento de Malhães serve como resumo essencial para todos aqueles que não viveram aquele período e agora, 50 anos depois, são bombardeados por análises, balanços e comentários diversos sobre uma época infamante da história brasileira. O grosso do palavrório busca passar a ideia de que havia, em 1964, duas visões golpistas em queda de braço - e a turma do fuzil venceu.
 
Tudo mentira. A resistência quase inexistente aos soldados de Mourão Filho não atesta um suposto apoio popular aos militares; prova que não havia nenhum esquema alternativo da parte do governo constitucional. Mal ou bem, as manifestações de insatisfação popular e as promessas reformistas de Jango procuravam trilhar o caminho da lei. Que diabo de golpista era este que propõe que o Congresso vote um estado de sítio e depois volta atrás?
 
Mal ou bem, as manifestações de insatisfação popular e as promessas reformistas de Jango procuravam trilhar o caminho da lei. Por mais não fosse, Jango estava longe de ser um revolucionário. Assim como o Partido Comunista Brasileiro, stalinista até a medula, não passava de simulacro do grupo que dirigiu a Revolução Russa de 1917. A tal agitação nos quartéis, comprovou-se, vinha de provocadores infiltrados - maiores informações com o cabo Anselmo.
 
É preciso muito papel, tinta e Gbytes para tentar esconder as digitais do imperialismo americano - isso mesmo, imperialismo até hoje - na sequência de quarteladas e ditaduras espetadas na América Latina. Por razões sobretudo econômicas - o tal livre mercado, naquela época, funcionava desta maneira (o general Amaury Kruel que o diga). Para subjugar a periferia, "Brother Sam" contou com a adesão, em diferentes graus, de elites locais, das quais era o verdadeiro senhor. A esse respeito, "O Dia que Durou 21 Anos", filme de Camilo Tavares, funciona como uma operação de catarata para quem procura fatos em vez de versões edulcoradas.
 
Que diabo de golpista era este que propõe que o Congresso vote um estado de sítio e depois volta atrás? Vamos e venhamos, soam patéticas as tentativas de encontrar o "lado bom" de um período que deveria ser lembrado para não ser repetido. No fundo, no fundo, não se diferenciam do coro que creditou a Pinochet o "milagre chileno". Os "Chicago Boys", apelido dos economistas pendurados na ditadura andina, só faltavam dizer: "Morreu um pessoal, mas são os ossos do ofício". Detalhe: tanto Jango quanto Salvador Allende haviam sido eleitos dentro das regras do jogo vigente. O malabarismo revisionista é tamanho que os dois, seguidores da letra da lei, viraram os golpistas e os golpistas, os legalistas!
 
O Partido Comunista Brasileiro, stalinista até a medula, não passava de simulacro do grupo que dirigiu a Revolução Russa de 1917. A tal agitação nos quartéis, comprovou-se, vinha de provocadores infiltrados - maiores informações com o cabo Anselmo. Um Malhães nessas horas dá um banho de realidade. Ao descrever como se livrar de vítimas durante a ditadura brasileira, exibiu a frieza de um cozinheiro especialista em desossar animais. "Naquela época não existia DNA [...] Quebrava os dentes. As mãos, cortava daqui pra cima."
 
Muita gente que apoiou os golpistas hoje ensaia um mea-culpa. Ninguém está isento de errar. Reconhecer o erro é direito legítimo, ainda mais se for para melhorar. Agora resta descobrir se há sinceridade na penitência. O próprio Malhães dá uma chance para medir a autenticidade da turma arrependida. Basta responder à pergunta: é normal uma situação em que, depois de tal depoimento, o sujeito vá para casa livre, leve e solto?
 
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No 2º parágrafo do 1º artigo da lei, lê-se: 'Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, de assalto, de sequestro e atentado pessoal'. Por isso, a maioria dos presos políticos não foi solta em 1979.