11/12/2013

África do Sul

Como ir além de Mandela sem se tornar Mugabe, essa é a questão

A glória de Mandela também é um sinal de que ele realmente não perturbou a ordem e o poder globais. Podemos supor que, levando em conta sua grandeza moral e política inquestionável, ele chegou ao fim da vida consciente de que sua elevação à categoria de herói era uma máscara da derrota

Slavoj Žižek
Nas duas últimas décadas de sua vida, Nelson Mandela foi celebrado como modelo de como a libertação de um país de seu colonizador pode ser feita sem que se caia na tentação do poder ditatorial e na pose anticapitalista.
 
Em resumo, Mandela não era Mugabe, a África do Sul continuou sendo uma democracia pluripartidária com imprensa livre e economia vibrante bem integrada ao mercado global e imune às ligeiras experiências socialistas.
 
Na África do Sul, a vida miserável da maioria pobre em geral continua a mesma de antes do apartheid, e o crescimento dos direitos civis e políticos é contrabalançado pelo aumento da insegurança, da violência e do crime Agora, com sua morte, sua estatura como homem santo e sábio parece confirmada para a eternidade: existem filmes de Hollywood sobre ele – ele foi interpretado por Morgan Freeman que, por sinal, também fez o papel de Deus em outro filme; astros do rock e líderes religiosos, atletas e políticos, de Bill Clinton a Fidel Castro, estão todos unidos em sua beatificação.
 
É muito simplista criticar Mandela por ter abandonado a perspectiva socialista depois do fim do apartheid: mas ele realmente tinha escolha?
 
E essa é toda a história? Dois fatos-chave continuam escondidos por esta visão celebratória.
 
A grande mudança é que à antiga classe branca dominante se somou a nova elite negra Na África do Sul, a vida miserável da maioria pobre em geral continua a mesma de antes do apartheid, e o crescimento dos direitos civis e políticos é contrabalançado pelo aumento da insegurança, da violência e do crime.
 
A grande mudança é que à antiga classe branca dominante se somou a nova elite negra.
 
A África do Sul é apenas uma versão da história contemporânea e recorrente da esquerda Em segundo lugar, as pessoas se lembram do antigo Congresso Nacional Africano que prometeu não apenas acabar com o apartheid, mas também justiça social e até mesmo uma espécie de socialismo.
 
Esse passado bem mais radical do CNA é gradualmente obliterado da nossa memória. Não é de espantar que o ódio entre os pobres e negros sul africanos esteja aumentando.
 
Neste ponto, a África do Sul é apenas uma versão da história contemporânea e recorrente da esquerda.
 
Na economia de mercado, as relações entre as pessoas podem parecer relações baseadas na igualdade e na liberdade: a dominação não é mais direta e visível como tal Um líder do partido é eleito com entusiasmo universal, prometendo um “novo mundo” – porém, mais cedo ou mais tarde, ele tropeça no dilema chave: ousa tocar nos mecanismos capitalistas ou decide “jogar o jogo”?
 
Se ele escolhe perturbar esses mecanismos, ele é rapidamente “punido” por distúrbios no mercado, caos econômico e todo o resto.
 
É por isso que seria muito simples criticar Mandela por ter abandonado a perspectiva socialista depois do fim do apartheid: ele realmente tinha escolha? A mudança em direção ao socialismo era uma opção real?
 
A única escolha é entre relações diretas ou indiretas de dominação e exploração — qualquer alternativa é descartada como utópica É fácil ridicularizar Ayn Rand, mas existe uma pitada de verdade no famoso “hino ao dinheiro” de seu romance “Atlas Shrugged”: “Até que – e a não ser que – você descubra que o dinheiro é a raiz de tudo que há de bom, você está pedindo sua própria destruição. Quando o dinheiro deixa de ser o meio pelo qual os homens lidam uns com os outros, então os homens se tornam as ferramentas uns dos outros. Sangue, chicotes e armas ou dólares. Faça sua escolha – não existe outra.”
 
Marx não disse algo similar em sua bem conhecida fórmula sobre como, no universo das commodities, “as relações entre as pessoas assumem a aparência das relações entre as coisas”?
 
Na economia de mercado, as relações entre as pessoas podem parecer relações baseadas na igualdade e na liberdade: a dominação não é mais direta e visível como tal.
 
O que é problemático na premissa subjacente de Rand: que a única escolha é entre relações diretas ou indiretas de dominação e exploração — qualquer alternativa é descartada como utópica.
 
Um líder do partido é eleito com entusiasmo universal, prometendo um “novo mundo” – porém, mais cedo ou mais tarde, ele tropeça no dilema chave: ousa tocar nos mecanismos capitalistas ou decide “jogar o jogo”? Entretanto, devemos ter em mente o momento da verdade na alegação ideologicamente ridícula de Rand: a grande lição do socialismo de Estado foi efetivamente a abolição direta da propriedade privada e das trocas reguladas pelo mercado; não ter formas concretas de regulação social do processo de produção necessariamente ressuscita relações diretas de servidão e dominação.
 
Se meramente abolimos o mercado (inclusive a exploração de mercado) sem substituí-lo por uma forma apropriada de organização comunista da produção e das trocas, a dominação volta com sede de vingança e com sua exploração direta.
 
Se ele escolhe perturbar esses mecanismos, ele é rapidamente “punido” por distúrbios no mercado, caos econômico e todo o resto A regra geral é que, quando uma revolta contra um regime semidemocrático começa, como foi o caso do Oriente Médio em 2011, é muito fácil mobilizar as massas com slogans que não se caracterizam de outra forma a não ser como agradáveis ao povo  – em defesa da democracia, contra a corrupção, por exemplo.
 
Mas então, aos poucos, chegamos a escolhas mais difíceis: quando nossa revolta é vitoriosa em seu objetivo principal, nos damos conta de que o que realmente nos incomodava (nossa falta de liberdade, a humilhação, corrupção social, falta de perspectiva de uma vida decente) continua sob novo disfarce.
 
A ideologia dominante mobiliza então todo seu arsenal para evitar que cheguemos a essa conclusão.
 
Começa a nos dizer que a liberdade democrática traz com ela reponsabilidade, que vem com um preço, que ainda não amadurecemos se esperamos demais da democracia.
 
Dessa forma, nos culpa por nossos fracassos: em uma sociedade livre, nos dizem, somos todos capitalistas investindo em nossas vidas, devemos investir mais na nossa educação do que em nos divertir se quisermos ser bem-sucedidos.
 
Podemos seguramente supor que, levando em conta sua grandeza moral e política inquestionável, ele chegou ao fim da vida um homem idoso e amargo, consciente de que seu triunfo político e sua elevação à categoria universal de herói era uma máscara da derrota amarga Em um nível político mais direto, a política externa dos Estados Unidos elaborou uma estratégia detalhada para exercer o controle desse problema de forma que recanaliza as revoltas populares para constrangimentos parlamentares-capitalistas aceitáveis – como foi feito com sucesso na África do Sul depois da queda do regime do apartheid, nas Filipinas depois da queda de Marcos, na Indonésia depois da queda de Suharto, e em outros lugares.
 
Nessa conjuntura precisa, políticas emancipatórias radicais encaram um grande desafio: como levar as coisas adiante depois que o primeiro estágio de entusiasmo passa, como dar o próximo passo sem sucumbir à catástrofe da tentação “totalitária” – em resumo, como ir além de Mandela sem se tornar Mugabe.
 
Se queremos nos manter fiéis ao legado de Mandela, devemos nos esquecer das lágrimas de crocodilo celebratórias e focar nas promessas não cumpridas que sua liderança fez nascer.
 
Podemos seguramente supor que, levando em conta sua grandeza moral e política inquestionável, ele chegou ao fim da vida um homem idoso e amargo, consciente de que seu triunfo político e sua elevação à categoria universal de herói era uma máscara da derrota amarga.
 
A glória universal de Mandela também é um sinal de que ele realmente não perturbou a ordem e o poder globais.