27/04/2001

História

"No Tempo das Certezas", livro útil pelas figuras

Em meio a uma avalanche de tranqueiras e gracinhas da penúltima virada de século, ainda bem que sobrou um pequeno espaço para a crítica: tudo é joguinho

História “é o que uma época julga importante numa outra”. É assim que J. Burckhardt redefine o conhecimento histórico e por tal formulação é incluído no rol de argumentos que Chesneaux mobiliza em favor de uma inversão radical da relação passado-presente: “Não é mais o passado que comanda (...). É o presente que questiona e faz as intimações” (Devemos fazer tábula rasa do passado? Ática, 1995). O passado conta pelo significado que emprestamos aos recortes históricos que selecionamos.


Eis uma valiosa chave para entender melhor o enfoque que Lilia Schwarcz e Ângela Marques da Costa adotaram ao escrever “1890-1914 — No Tempo das Certezas”, publicado em dezembro de 2000 pela Companhia das Letras. O título remete aos clássicos de Galbraith (A era da incerteza, Pioneira, 1984) e de Hobsbawn (Era dos extremos – O breve século XX – 1914-1991, Companhia das Letras, 1995), e cumpre um péssimo papel, ao vender ao leitor um produto que não entrega.


Pois não se trata de um esforço para compreender um leque amplo das certezas que viscejavam naquele período, inclusive no Brasil, mas de um “empreendimento light” (sem trocadilhos com a importância da eletricidade na Exposição Universal de Paris) que passa praticamento batido pelo titânico embate ideológico daqueles anos fundamentais e gasta páginas e mais páginas para enaltecer apenas uma (certamente central, mas não a única) das “arrogâncias/utopias/ingenuidades” da virada de século: a confiança na imbatível ciência e seus subprodutos tecnológicos.


Um capítulo inteiro (o 10º), diga-se de passagem, é dedicado aos “homens incríveis e suas máquinas maravilhosas”. Será por acaso que Angela, historiadora da área de documentação, e Lilia, antropóloga autora de outros três livros abordando temas do século XIX, escreveram um trabalho assim para fazer fileira com os outros seis da coleção Virando Séculos?


O resgate da “inversão radical” de Chesneaux nos auxilia na compreensão de que nosso fim-de-século explica bem essa escolha. Afinal, vivemos um período de espantosas novidades, diante das quais continuamos embasbacados: Internet e Biotecnologia são agora as atrizes centrais, no lugar que 100 anos atrás a Eletricidade e a Ferrovia ocuparam. Hoje como então, as novidades, as facilidades, os avanços são celebrados e usufruídos por uma ínfima parcela da sociedade, tão encantada com o progresso que esquece de questões fundamentais que na virada do XIX para o XX, como na virada do XX para o XXI, teimam em atrapalhar o show.


Para imensa maioria sem luz elétrica (mesmo no ano 2001), sem sabão, sem computador ou sem acesso à saúde, resta ao brasileiro o típico recurso à gozação. Hoje temos Casseta e Planeta, ontem tínhamos o precioso Fon Fon. Mas pouca coisa mudou, a despeito de todo deslumbramento.


No caso de “No tempo das certezas”, a célebre pergunta do preguiçoso é mais que bem-vinda (o livro tem figuras?), pois é o material iconográfico espalhado pelas 176 páginas que compensa o dispêndio de R$ 22 (ou 12% do salário mínimo vigente a partir deste mês).


Em meio a bondes, engenhocas, cometas e escarradeiras, topamos com uma figura de um casal de negros em diálogo sobre as pretensões do branco de "voar pelos “á, passando pru riba das nossa cabeça"”. A mulher, Genoveva, retruca: "“tá bom! Blanco tá querendo voá como os urubú p’ru cima da genti, mas não é capais d’inventá uma côsa tão boa como jogo do bicho"”. A conversa encerra com a eleição do próximo domingo, e a conclusão é amarga. Genoveva diz para seu interlocutor: "“ossuncê joga nele qu’eu jogo no tigre, na segunda-feira. Eh! Eh!" Tudo é joguinho”.


1890-1914 – No tempo das certezas
(6º e penúltimo livro da Coleção Virando os Séculos)
Companhia das Letras
Ângela Marques da Costa e Lilia Moritz Schwartz – 2000
176 páginas e muitas ilustrações
Preço: R$ 22,00