00/00/2003

"As Relações Perigosas": tragédia francesa, traição narrativa

"As Relações Perigosas" de Choderlos de Laclos, narrativa em estrutura epistolar publicada em 1782 (recriada para o cinema duzentos anos depois, com o brilhante John Malcovitch como Valmont), é definitivamente um clássico. Por isso, como sucede na recepção de todo fruto da genialidade, as opiniões sobre o livro são múltiplas, muitas vezes conflitantes. Quando o estímulo é rico e denso, as repercussões também são variadas e profundas.


Boudelaire, por exemplo, teria pinçado um "satanismo" na série de maquinações perpetradas pelo casal formado por Valmont (um visconde) e Merteuil (uma marquesa), filiando a obra à tradição sádica. Há outros que identificam nela uma peça de acusação da leviandade, vileza e indiferença da aristocracia, associando-a à atmosfera crítica que culminaria na Revolução.


A narrativa consiste numa construção de histórias íntimas a partir de prismas múltiplos – conhecidos através de cartas –, que podem ser agrupadas em dois partidos: o da ingenuidade e o da exploração da ingenuidade.


Valmont e Merteuil foram amantes. Separados no passado por iniciativa dele, tornam-se cúmplices, mesmo à distância, de projetos cujo único objetivo é o prazer da conquista de boas almas – quanto mais recatadas e honestas, melhor – e usufruto carnal – um prêmio na verdade acessório – de seres desprotegidos de sua assustadora capacidade de dissimulação. Por sensacionais reviravoltas na dinâmica engendrada pela dupla, finalmente se (des)encontram convertidos em inimigos mortais. Inimigos mortais até as últimas conseqüências. Nem mesmo o visconde e a marquesa, anti-heróis por excelência, puderam prever todos os poderosos desdobramentos de suas manobras.


Contra os estudiosos que marcam em demasia um contraste entre enredo e desenlace, pode-se sugerir na verdade um processo pelo qual os germes de intriga e engano são alimentados, testados e conduzidos num continuum até suas fronteiras extremas. Contra quem enxerga um desfecho moralista, é possível apontar que Valmont e Merteuil na verdade descuidam de sua "profissão de fé no não envolvimento", e são tragados por amor e ódio que sistematicamente, com toda a pose, reprimiam desde a primeira carta. O fim é a perda de pulso da situação, e não uma intervenção punitiva do Bem, que nada pode fazer, de tão prostrado, achincalhado e ludibriado que está, apanhando sem dó por toda a narrativa da inteligência egoísta.


Sedução e traição são a todo momento levadas a efeito nas ações dos personagens. Mas acima de tudo encontram paralelo na sedução e traição que caracterizam a narrativa em si mesma. O palavreado finamente articulado hipnotiza o ingênuo leitor. No momento do final trágico, a verdade das intenções permanece (para sempre) cerrada sob silêncios perturbadores. O engano é esmiuçado. Mas a tragédia fica sem explicação equivalente.


A obra, e dois textos sobre a obra:


Laclos
, Choderlos de. As Relações Perigosas. Trad. Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Globo, 1993


Moraes
, Eliane Robert. "As ambigüidades de Laclos". Folha de S.Paulo, 06/07/1997


Todorov
, Tzvetan. "As categorias da narrativa literária". Análise estrutural da narrativa – pesquisas semiológicas (vários autores). São Paulo: Vozes, 1973