05/07/2015

Manifesto paranoico

Radiação zumbífera: antinotícia, antipolítica e desumanização

A combalida imprensa brasileira sufoca e subverte as questões realmente importantes por conveniência política. O objetivo – basicamente derrubar alguns e blindar outros – pode ser alcançado, mas os efeitos colaterais anticivilizatórios e anti-humanos deste cinismo são desastrosos.

Ricardo Whiteman Muniz, mestre em sociologia da religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2000), bacharel em Direito (USP, 1993) e jornalista (Faculdade Cásper Líbero, 2004).
“Entre os domingueiros da Paulista, a credibilidade de alguém se dá na razão inversa de seu compromisso com os fatos. Mais do que motivados por ideologia ou opinião, muitos manifestantes estão simplesmente alucinando. Meu problema não é antes com a ideologia, mas com a falta de contato com a realidade. O debate não é tão político quanto psicopatológico. Há um nó psíquico encalacrado nas ruas e redes. Em nome da sua própria subsistência, que [a mídia] ajude a reparar o déficit de educação política com mais reportagem, inteligência, isonomia, apuro e, principalmente, um pouco de cuidado com a frágil sanidade pública.” (Trechos de post do jornalista Bruno Torturra, publicado no Facebook em 15 de abril de 2015)
 
Texto apresentado como requisito do curso "Ciborgue, precário, zumbi", ministrado pelo professor Rafael de Almeida Evangelista (Tópicos atuais em ciência e cultura, mestrado no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp) A figura do zumbi é usada neste texto como metáfora imperfeita para indicar a degradação da opinião pública brasileira e, no limite, um trágico caso de desumanização que se desenrola diante da perplexidade dos “esclarecidos” inertes, prostrados – que se limitam a choramingar no Facebook e no Twitter. Com fins políticos, a chamada grande imprensa ajudou a cevar a antipolítica, a pocilga em que o objetivo maior é desviar, sufocar, neutralizar e deformar as questões realmente importantes. Não há democracia real sem a exposição clara – a comunicação não arruinada – do que é importante. O jornalismo teria de ser um canhão, ou uma sirene, de importância. Não tem sido.
 
Isso é trágico porque o que faz o humano ser humano é a capacidade de processamento das questões realmente importantes. Não falamos aqui “só” de democracia, mas de civilização e humanidade.
 
Phillipe Breton escreve sobre o ambicioso projeto utópico de Norbert Wiener, o pai da cibernética, que se articula em torno da comunicação e propõe uma outra definição antropológica do homem: o Homo communicans. Não é o corpo biológico que funda sua existência social mas, antes, sua natureza informacional[1]. “Todos os seres comunicantes possuem um estatuto antropológico comparável, desde que estejam todos no mesmo nível de complexidade. A nova ‘humanidade’ diz respeito pois a todos os homens mas pode se estender, também, a todos os seres candidatos ao estatuto de ‘parceiro comunicativo’ integral.” O pensamento é uma qualidade que não pertence ao homem propriamente dito porque é transferível para fora da pessoa. As leis do pensamento são gerais, independentes de seu contexto humano de produção. “A revalorização do pensamento é um projeto inteiramente explicitado na vontade de construir máquinas de inteligência artificial por intermédio do computador que fossem capazes de, em performance, ultrapassar o espírito (mind) humano.”
 
O jornalismo teria de ser um canhão, ou uma sirene, de importância. Não tem sido. Ora, diante desse princípio fundamental da cibernética, o receio popularizado por vasta produção ficcional é que a máquina com inteligência artificial assuma o controle e solape o status dominante dos homens. Sim, a antropologia wieneriana não é humanista. Como a “vida” não reside mais no biológico, e sim na “comunicação”, qualquer dispositivo que se comunique com eficiência pode ser considerado, em última instância, humano.
 
Temor menos explorado, contudo, é o justo inverso disso. O humano que não se comunica já não é humano. Este artigo é de certo modo um alerta-lamento: muito pior do que máquinas-humanas dominantes é  que o homem-não-humano, aqui apelidado “zumbi”, assuma o controle.
 
Zumbi
 
O zumbi, e aqui nos concentramos na versão predominante no cinema americano, e não na original haitiana (escravo ressurecto, para trabalhar nos campos à noite), é qualquer ex-humano com apetite para devorar o humano. Não se comunica, só emite gemidos animalescos. Embora – curiosamente – o único jeito de pará-lo seja destruindo seu cérebro, o cérebro não lhe serve para nada. Ao apresentar sua desconcertante promessa distópica em A Zombie Manifesto, Sarah Juliet Lauro e Karen Embry definem:
 
“Whereas the vampire and even the intangible ghost retain their mental faculties, and the werewolf may become irrational, bestial only part of time, only the zombie has completely lost its mind, becoming a blank – animate, but wholly devoid of consciousness”
 
O zumbi anda vagarosamente, mas segue com irritante persistência em função de um único objetivo: comer gente viva. Não há organização[2]. Cada zumbi segue seu norte: sempre na direção de aterrorizados humanos vivos. Do remanescente não-zumbi, só se salvam os que se escondem e ficam em silêncio, fogem para longe ou têm muita munição e pontaria razoável para estourar miolos em grande quantidade. Não é fácil. Embora sejam lerdos, podem não intencionalmente montar tocaias eficazes, porque multidões acabam convergindo para um ou poucos indivíduos, acossando-os. Para os sobreviventes, coordenação, agilidade e acesso a informações também é crucial nos casos bem-sucedidos de resistência à horda não-humana. É interessante, quanto a esse último aspecto, o papel decisivo do velho rádio em Night of the Living Dead (1968) do diretor George Romero, mas também em Terminator Salvation (neste caso, na luta contra as máquinas).
 
Radiação zumbífera
 
O que causa a desgraça zumbi? Em Night of the Living Dead é a radiação liberada por uma sonda espacial que explode na atmosfera terrestre ao retornar de Vênus. Seu efeito é levantar cadáveres do sepulcro, pondo-os em marcha para consumir carne humana.
 
Na arena pública brasileira, opera com cada vez mais intensidade uma radiação zumbífera: a antinotícia posta em circulação (por quem?) para promover a antipolítica. Exemplos: alguém passa pela avenida vestindo uma peça vermelha e é imediatamente hostilizado (no limite da agressão física, mas em breve veremos agressão pura e simples, generalizada); alguém fala nas redes sociais ou simplesmente é (negra, gay, mulher) e instantaneamente torna-se ímã para o bombardeio de todo tipo de ofensa e ameaça.
 
Em certas circunstâncias, é melhor pecar por paranoia do que por indiferença, considerados os altos custos que a passividade sonolenta, covarde ou blasè pode acarretar. O DNA da notícia é a novidade, a importância, o interesse, a originalidade, a oportunidade e a proximidade. Deve-se buscar "fidelidade canina" à verdade factual[3] e fiscalizar o poder, onde quer que se manifeste: o econômico, o político, o do crime, mas também o poder dos que combatem o crime, dos que fiscalizam o poder político, dos que auditam ou dão notas de crédito às empresas e aos países, o que inclui no radar crítico-jornalístico a polícia, o Ministério Público, as agências de classificação de risco etc., sem falar na própria mídia .
 
O prejuízo com a perda de qualquer dessas características é imenso, configurando uma “doença degenerativa” do jornalismo, mas pode-se cogitar abrir mão de tudo o mais, desde que se conserve a importância e a fidelidade à verdade factual. Isso porque, para a política, por exemplo, não importa se fulano é gay (importa o debate sobre direitos humanos da comunidade LGBT); não importa o filho do Lula (importa saber se houve ou não houve tráfico de influência); não importa se Aécio cheira cocaína (a menos que seja traficante de drogas).
 
Programa de guerrilha: resgate da notícia como elemento humanizante e civilizatório
 
“A imprensa brasileira é escrota e covarde, e nesse defeito também me incluo há décadas, na defesa da morte e do sangue, quando deveria ter uma política civilizatória. O papel da imprensa não é apenas referendar tendência medieval, muito ao contrário, é tentar não mentir ou valorar a mistificação que só favorece a direita salivante. [...] Não podemos nos aquietar com jornalismo de pesquisa. Se a barbárie é maioria, lutemos um pouco contra a barbárie, mesmo que o humanismo não dê ibope. [...]”
(post do jornalista Xico Sá no Facebook, 2 de julho de 2015)
 
A radiação zumbífera à moda brasileira é feita de antinotícia[4]. Como lidar com essa ameaça?
 
(a) Destruir a fonte de radiação (o ideal seria mesmo impedir o retorno da sonda espacial, destruindo-a antes da entrada na atmosfera, mas é tarde demais...). Isso equivale a aprovar a lei de regulação da mídia;
 
(b) Conectar-se na rede de comunicação da resistência, usando a internet no que ela tinha de promessa liberadora;
 
(c) Estourar os miolos dos zumbis (com notícia, com coordenação antiboato... literalmente?).
 
Quem poderá lutar hoje contra o zumbismo brasileiro? Parte importante da refrega cabe aos jornalistas, no resgate das questões realmente importantes e do que é, é/o que não é, não é. Mas, como aponta Torturra em seu post de 15 de abril, a mídia “sofre financeiramente, demite em massa e perde circulação”, enquanto insiste em sua cruzada (a dos barões). Ela segue “à vontade para opinar, pautar e excretar regras em editoriais como é de sua função e direito”. O problema é que “enquanto editoriais e manchetes escancaram nada discretamente a erosão da popularidade de políticos, a imprensa ignora que ela também está sem crédito nessa praça lotada de gente de tocha na mão”. Parece no entanto que esse estado de coisas não mudará a depender dos donos.
 
O que resta aos empregados? A situação dos trabalhadores da notícia não é muito diferente da descrita por Marx e Engels no Manifesto Comunista:
 
“O crescente emprego de máquinas e a divisão do trabalho despojaram a atividade do operário de seu caráter autônomo, tirando-lhe todo o atrativo. O operário torna-se um simples apêndice da máquina e dele só se requer o manejo mais simples, mais monótono, mais fácil de aprender. Desse modo, o custo do operário se reduz, quase exclusivamente, aos meios de subsistência que lhe são necessários para viver e perpetuar sua espécie. Ora, o preço do trabalho, como de toda mercadoria, é igual ao seu custo de produção. Portanto, à medida que aumenta o caráter enfadonho do trabalho, decrescem os salários. Mais ainda, na mesma medida em que aumenta a maquinaria e a divisão do trabalho, sobe também a quantidade de trabalho exigido num determinado tempo, quer pela aceleração do movimento das máquinas etc.”
 
A pesquisa no Google, o amplo uso das agências de notícias e os manuais de redação castrantes são paralelos para o ofício jornalístico da “maquinização” no que diz respeito ao operário de fábrica propriamente dito. Deve-se acrescer a isso uma nítida mudança de perfil das redações jornalísticas. Sucumbe o modelo do mix de gerações, e são cada vez mais comuns as redações compostas por jovens de 20 e poucos anos, reféns da precarização (os “pejotas”). Precarização cujo subproduto é a “raiva, anomia, ansiedade e alienação”, como aponta Guy Standing.
 
Pejotização, frilas, um sindicato ridiculamente fraco quebraram a espinha do jornalismo como front de resistência.
 
Mas aqui e ali surgem iniciativas[5] justamente de jornalistas saídos do circuito até há pouco convencional. Entre precários e proficians[6], quem sabe possam fazer frente à horda ou, antes disso, à megamáquina radioativa que tem gerado a horda.
 
No Post-scriptum sobre as sociedades de controle, Gilles Deleuze descreve a mudança dos regimes de disciplina para os de controle, da modelagem à modulação. Finaliza com um alerta:
 
“Uma das questões mais importantes diria respeito à inaptidão dos sindicatos: ligados, por toda sua história, à luta contra disciplinas ou nos meios de confinamento, conseguirão adaptar-se ou cederão o lugar a novas formas de resistência contra as sociedades de controle? Será que já se pode apreender esboços dessas formas por vir, capazes de combater as alegrias do marketing? Muitos jovens pedem estranhamente para serem ‘motivados’, e solicitam novos estágios e formação permanente; cabe a eles descobrir a que estão sendo levados a servir, assim como seus antecessores descobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas.”
 
Cabe aos jornalistas descobrir a que estão sendo levados a servir. A multiplicação de experiências (ainda não se sabe se sustentáveis) jornalísticas “livres” ou “guerrilheiras” são a única esperança de combate às grandes estruturas radioativas antinotícia e antipolítica, portanto produtoras de zumbis. Como os zumbis são decrépitos mas não desistem nunca, a alternativa ao combate em três frentes, indicado acima, será o isolamento dos não-zumbis.
 
Nota sobre o alarme, o exagero e o pessimismo
Em certas circunstâncias, é melhor pecar por paranoia do que por indiferença, considerados os altos custos que a passividade sonolenta, covarde ou blasè pode acarretar. Seria e é perfeitamente possível argumentar que o que vemos é “mero jogo político”. Mas o mantra “é do jogo” já não se aplica ao caso brasileiro. Como alertou Torturra, a direita biliar também repudia essa imprensa que, por conveniência, a cevou e impulsionou. Na luta de morte contra o mais tímido e conciliador progressismo, as organizações de produção de noticiário vão ao limite do suicídio no que diz respeito ao mais básico: apresentar fatos e propor o debate das questões realmente importantes. Enquanto alguns focos da academia brasileira investem em boa-fé na divulgação científica como um front nobre e avançado do jornalismo, pelas costas, nas redes e nas ruas, milhares de cidadãos com ensino superior e jamais tão abastecidos de “informação” exibem o mais acachapante primitivismo em temas básicos. Esse desconcertante (e patrocinado) desapego da realidade já está cobrando muito caro de nosso futuro.
 
Referências
 
BRETON, Phillipe. Norbert Wiener e a emergência de uma nova utopia.
DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle.
LAURO, Sarah Juliet.EMBRY, Karen. A Zombie Manifesto : The Nonhuman Condition in the Era of Advanced Capitalism. Boundary 2, edição de primavera.Duke University Press: Durham, Carolina do Norte (EUA), 2008.
MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. 1848. Edição comentada da Boitempo Editorial: São Paulo, organização e introdução de Osvaldo Coggiola, 2010.
STANDING, Guy. O precariado – A nova classe perigosa. São Paulo: Autêntica Editora, 2013.


[1] Muito interessante a combinação desta ideia-chave com um dos trechos centrais do Novo Testamento cristão: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus [...] E o Verbo se fez carne [...]” Evangelho segundo João, capítulo 1, versículos 1 e 14.
[2] Há exceções neste padrão: em Land of the Dead (2005) de George Romero, um frentista-zumbi (negro) inexplicavelmente desenvolve habilidades táticas e de liderança da horda. O que parece ser o estopim desse despertar é a indignação com a morte de seus pares, perpetrada quase que por diversão por um grupo de vigilantes-exterminadores humanos.
[3] A verdade como correspondência foi definida por Aristóteles no tratado Da Interpretação, no qual ele analisa a formação das frases suscetíveis de serem verdadeiras ou falsas. Uma frase é verdadeira quando diz que o que é, é, ou que o que não é, não é. Uma frase é falsa quando diz que o que é, não é, ou que o que não é, é.
[4] Um de abundantes exemplos recentes: “Quase um quarto de tudo conteúdo publicado no Twitter é falso, conforme constatou um estudo do Instituto de Tecnologia da Geórgia, em Atlanta, nos Estados Unidos, encabeçado pela pesquisadora indiana Tanushree Mitra. O levantamento ganhou o nome de CredBank por avaliar a credibilidade dos tuítes e averigou mais de 1 bilhão de dados de outubro de 2014 a fevereiro de 2015. A partir dos dados coletados, a acadêmica descobriu um hoax que surgiu num site de paródias e foi divulgado por veículos como a Newsweek como um ‘apocalipse zumbi do ebola’.” Comunique-se, 22 de junho de 2015. Há casos muito piores.
[5] Ponte, Fluxo, Jornalistas Livres, Agência Pública, Mídia Ninja
[6] “Esse termo combina as ideias tradicionais de ‘profissional’ (professional) e ‘técnico’ (techician), mas abrange quem detém um conjunto de habilidades que podem ser vendidas,recebendo altos rendimentos em contrato, como consultores ou trabalhadores autônomos. Os proficians equivalem aos yeomen (pequenos proprietários de terras com direitos políticos), cavaleiros e squires (nobres rurais) na Idade Média. Vivem com a expectativa e o desejo de se mudar continuamente, sem um impulso para o emprego de longo prazo e de período integral numa única empresa. A ‘relação de emprego padrão’ não serve para eles.” Guy Standing in O precariado – A nova classe perigosa. p. 24. Os proficians estão acima de “um ‘núcleo’ retraído de trabalhadores manuais, a essência da velha ‘classe trabalhadora’”.